quarta-feira, 20 de julho de 2016

Capítulo 12 - Os Sacerdotes Guerreiros

   Drake levantou-se, acordado pelo pálido Sol nascente que lutava para atravessar as venezianas. Um vento frio soprava pelas frestas da janela; há alguns meses atrás, esse mesmo vento teria arrepiado seu peito nu e enviado calafrios pela sua espinha, mas não mais. Desde que sua verdadeira natureza aflorara, o frio e o calor que afligiam os homens comuns pouco o incomodavam.
   O ladino espreguiçou-se e voltou a sentar na cama, acordando sua outra ocupante.
   - Já acordado? - Helen, também chamada de Pardal, sorriu preguiçosamente para ele.
   Drake deu um meio-sorriso de volta. - Já... tenho que ir à Fortaleza.
   - Ver seu amigo anão?
   Drake fez que sim. Helen levantou-se, revelando mais uma vez o corpo nu. Seus seios eram pequenos e sua forma era magra e dura, muito diferente de uma camponesa ou de uma fidalga; para Drake, no entanto, era mais bela do que qualquer outra. "O corpo de uma lutadora," pensou ele.
   Tiritando de frio, a moça apanhou uma túnica num velho cabide no canto da sala. O sobrado que ela alugava era um lugar feio e soturno, mas Drake amava o tempo que passava ali. Suspirando, o rapaz calçou suas botas.
   - Não está com frio? - a moça correu um dedo pelos seus ombros magros.
   - Tem que ser mais frio que isso pra me incomodar - disse Drake, presunçoso, vestindo agora o justilho de couro.
   - Nossa, que durão. Meu homem - disse a moça, carregando a voz  de sarcasmo.

   Levantando-se novamente, Drake encarou sua amante. Mesmo vestida, Helen conseguia parecer absurdamente sedutora quando queria. O convite para ele ficar ali subjazia nos olhos castanhos brilhantes da moça; mas, por mais que lhe doesse, Drake não ousaria perder a luta. Mesmo que Sven fosse um tanto irritante e duro com ele, o tiefling devia a vida ao anão. Se ele caísse em batalha, o mínimo que Drake podia fazer era estar presente
   - Bom! - anunciou, em voz alta. - Foi uma noite aprazível, minha senhora. Agora devo ir.
   - Não sou nenhuma senhora - Helen sorriu de forma provocante - Nos vemos por aí, Drake.
   Era assim, pensava Drake, enquanto os degraus da escada rangiam sobre seus pés. Sem beijos, sem despedidas, sem declarações de amor. Era assim com ela, e isso o feria... mas Drake não ousava pedir mais. Se ele a acuasse, o pouco que tinha podia facilmente voar pela janela, rápido e ligeiro como um pardal.
   Com a cabeça na manhã agradável que estava jogando fora, Drake atravessou os limites do Distrito da Prata próximo ao Rio da Enguia. Parou por alguns instantes e comprou, em um estande maltrapilho, um peixe fluvial assado na brasa e alguns goles de cerveja barata para lavar a boca. Arrotando, percorreu o caminho calçado em pedra clara que levava à Fortaleza de Sidar.
   O caminho estava agitado, mesmo naquela hora da manhã. Drake preferiu não chamar atenção para si, cobrindo a cabeça com o capuz de sua capa negra; assim podia bisbilhotar mais à vontade. Ouviu várias pessoas trocando palavras animadamente sobre a luta que aconteceria ao Sol alto; vários ambulantes subiam com carrocinhas para vender seus produtos à audiência. Drake sorriu para si mesmo, imaginando na satisfação do espalhafatoso Sven ao ter todo aquele público para ouvi-lo.
   Chegando à Fortaleza, algumas palavras doces e uma peça de prata convenceu os guardas a indicar o caminho até Sven. Atravessando o prédio principal, Drake desceu um lance de degraus que davam num belo jardim, colorido nos tons de outono; passando por arbustos e uma pequena fonte adornada com um tritão e uma sereia, chegou ao pátio onde o confronto tomaria lugar.
   Era uma área ampla e quadrada, circundada em três lados por altas paredes das torres e blocos ao redor. O chão era também calçado em pedra, que estava notavelmente encardida e cheio de marcas de pés - um pátio de treino para os membros da corte do Duque, imaginou Drake. Em duas paredes opostas, arquibancadas de madeira tinham sido montadas e estavam abarrotadas de espectadores: nobres e plebeus, homens e mulheres, velhos e crianças.

   imgur.com

Após uma ligeira busca, Drake identificou Sven e os demais membros da Companhia em um dos cantos da arena. Encaminhou-se para lá num passo ligeiro.
   Thudar ajustava a placa de peito da armadura de batalha de Sven. O anão parecia um bocado nervoso, trocando palavras com Darsh e Tom.
   - ...e então, estou preparado para fazer algumas contramágicas, caso ele exagere nos feitiços. - Thudar agora calçava as grevas de Sven - Espero que não, no entanto. Sempre lidei melhor contra brutos com espadas nas mãos. Olha só! Mestre Drake, achei que você não viria!
   O resto da Companhia cumprimentou o tiefling disfarçado em sua forma humana. Com a exceção de Aleena, todos tinham comparecido para torcer pelo amigo. Junto a eles havia um senhor de meia-idade, vestido em longas vestes clericais e com o cabelo castanho tonsurado. Percebendo seu olhar, o senhor estendeu a mão para Drake, cumprimentando-o.
   - Padre Geris, meu jovem - disse, apertando a mão de Drake - E você deve ser Drake? Seus amigos me falaram sobre você.
   - Um prazer. - disse Drake, embora desconfiado - O que o trás aqui, padre?
   - A igreja de Pelor espera ansiosamente que Hextor receba o devido tratamento nessa cidade. - a expressão de Geris fechou - Seu amigo foi muito corajoso em aceitar o desafio. Os clérigos do Deus da Conquista são treinados não apenas nas orações, mas são também celebrados como grandes guerreiros... não vai ser uma luta fácil.
    Drake viu uma sombra no olhar do anão. Sentiu pena; eles tinham suas diferenças, mas, entre todos os membros da Companhia, Sven era o que o tratava melhor - e salvara sua vida inúmeras vezes.
   - Vai ser mole, Sven. Tenho pena do pobre coitado que vai te enfrentar. - olhou ao redor - Onde está ele, por sinal?
   - Ali - apontou Geris.
   O oponente de Sven era humano. Um homem com cabelos furiosamente vermelhos e muitas sardas no rosto, de constituição pesada, musculoso; uma cicatriz cortava sua face diagonalmente. A armadura que usava era completa tal como a de Sven, toda de placas de aço escurecido. Não era um homem alto, mas, contra um anão, isso não era desvantagem alguma.
   - Braços mais compridos que os seus, Sven. Vai ter que tomar cuidado com o alcance dele - disse Darsh, preocupado.
   - Não se preocupe, Mestre Darsh - disse Thudar, com um sorriso - Nós anões estamos acostumados a lutar contra oponentes maiores.
   - Somos feitos na altura certa para a batalha! - riu Sven - Acertamos eles bem nos joelhos! Há!
   Drake percebeu que os anões tentavam ocultar o nervosismo com humor. O oponente tinha o porte de um guerreiro, e sua expressão era francamente homicida.
   Thudar vestiu o elmo élfico em Sven. A fenda em três partes era um tanto mais larga do que elmos humanos ou anões, pois os elfos valorizavam muito a visibilidade em combate. Sven puxou a barba, ajeitando-a abaixo do elmo.
   - Meu martelo! - Tom passou a arma para o clérigo, que, então, anunciou: - Estou pronto.
   Prendendo a respiração, Drake e os outros assistiram enquanto o clérigo chacoalhava até o meio da arena. Seu oponente fez o mesmo, e Drake sentiu uma pontada de medo ao vê-lo vestido para a batalha: carregava um mangual em uma das mãos, e seu elmo - que cobria completamente o rosto - tinha as feições de alguma fera demoníaca, com chifres de aço negro e uma bocarra aberta, com a língua pra fora. Pararam a quase dez metros um do outro, se encarando, e um arauto tocou uma trombeta para silenciar o público. Uma chuva fina começou a cair.

www.pinterest.com

   - Nós estamos aqui hoje diante dos Deuses - anunciou o Arcebispo Osmund, se traje verde se salpicando de gotas de chuva - para presenciar sua divina vontade. O clérigo Sven, da fé de Moradin - o velho apontou para o anão, que assentiu -, foi acusado de conduzir operações ilegais nas propriedades de nosso regente, Duque Artim Daven III. Entretanto - ele levantou um dedo, pois o público começava a bradar - o Duque, em sua misericórdia, permitiu ao acusado defender a inocência de suas ações pelo julgamento mais sagrado e antigo: um julgamento entre campeões da fé.
   Os plebeus e fidalgos se exaltavam, mesmo debaixo da chuva. Apenas os membros da Companhia e os anões, amigos e empregados de Sven, permaneciam num silêncio incômodo. A garganta de Drake estava estranhamente seca para um dia tão úmido.
   - Em nome do Duque e da justiça - bradou o velho, tentando sobrepujar a multidão nas arquibancadas -, recebemos o campeão Ronnet, o Vermelho, sacerdote guerreiro da fé de Hextor.
   O cavaleiro negro levantou seu mangual no ar. Muitos na multidão o aclamaram. "Exibido," pensou Drake.
   - Em nome do acusado, recebemos o próprio Dûr Sven, sacerdote guerreiro da fé de Moradin.
   Drake bateu palmas molhadas, desmotivado, enquanto Tom gritava junto aos anões em suas vozes roucas. Sua aclamação parecia ecoar, vazia, nas paredes de pedra branca da Fortaleza de Sidar.
   - Que os Deuses intercedam pelo mais justo e inocente. O combate inicia ao primeiro toque da trombeta, e termina imediatamente ao segundo. - fez, então, um gesto com as mãos, desejando boa sorte aos combatentes, e sentou-se.
   Um silêncio se abateu sobre todos. A chuva se adensava, tamborilando nas armaduras dos clérigos. O coração de Drake martelava no peito, e ele sentia vontade de gritar para acabar com aquele silêncio torturador. Cinco segundos se passaram. Dez segundos... quinze... vinte...
   O longo lamento da trombeta foi acompanhado de urros da plateia. Os combatentes avançaram.

O Mestre

Nenhum comentário:

Postar um comentário