sexta-feira, 17 de junho de 2016

Capítulo 10 - A Frustração de Aleena

   - Opa, cuidado!Tenha mais calma, orc! Essas pedras são importadas do Sul!
   Darsh, o feiticeiro, usava alguns encantos para levitar os blocos de pedra cortada para o teto do pequeno templo de Moradin, inspecionado por Sven. O meio-orc se virou, nervoso, para o anão.
   - Pensa que é fácil levitar uma pedra desse peso? Prefere que eu as arremesse com as mãos?
   Sven resmungou algo pra si mesmo, mas não insistiu; afinal de contas, Darsh estava ajudando de boa vontade. Virou-se para observar o resto da obra.
   Vários anões (e alguns humanos) andavam pelo espaço do templo, atarefados. Alguns estavam substituindo as velhas pedras cinzentas e quebradas por novas, polidas e brilhantes; outros limpavam e escovavam as colunas interiores, reabasteciam os braseiros e varriam o chão. Uma mesa de trabalho fora montada no jardim que circundava o templo, e lá o velho arquiteto Gertrum planejava a ampliação da estrutura externa do templo. Sven limpou a testa suada no antebraço peludo; sorriu, satisfeito, pois aquilo estava começando a ficar com a cara de um templo de verdade.
  

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    - Mestre Sven! Mestre Sven! - chamou uma voz, na língua dos anões.
   Era Gertrum. O anão calvo possuía uma longa barba branca que tocava o chão, e sempre o tratava com grande deferência. Ele vinha carregando um rolo de pergaminho e tinha as mãos sujas de tinta esverdeada.
   - Diga, Gertrum! Algo de errado?
   O ancião coçou a barba, sem jeito.
   - Na verdade, mestre, há sim. As mudanças que você pediu que eu planejasse... bom, reformar um pequeno templo é fácil e relativamente barato. Ampliar a estrutura, no entanto, é outra história.
   - Como assim? Não pode ser feito?
   - Pode, mas faltam recursos... equipamentos, material, força de trabalho... teremos que escavar os arredores para construir o subsolo, levantar pelo menos mais nove colunas...
  - Ouro - interrompeu-o Sven - não é um problema. De quanto precisamos?
   Gertrum retorceu a barba, nervoso.

   - Pelos meus cálculos, pelo menos mais três centos de peças de ouro, senhor. Pra começar a montar a estrutra.
   Sven colocou uma mão no ombro direito do velho.
   - Mande seus homens comprarem o que é necessário e contratarem mais operários. Trarei o ouro hoje após o descanso dos trabalhadores. Sorria, homem! Estamos trazendo honra ao nome do Forjador de Almas!
   - O senhor é um santo, Mestre Sven; que sua barba nunca fique rala. - os olhos de Gertrum estavam marejados - Quem são aqueles que vem lá? Seus amigos, mestre?
   Sven virou-se para ver de quem se tratava. Três homens avançavam pela trilha de terra que o gramado, vinda de uma das ruas do Distrito dos Templos. Os dois que ladeavam o terceiro eram homens duros, de cabelo cortado curto, vestidos em couro negro fervido; portavam espadas curtas embainhadas e andavam marchando. O do meio, provavelmente seu líder, tinha um expressão controlada e vinha andando de forma mais tranquila. Ele tinha cabelo louro pálido, preso num rabo-de-cavalo apertado; seu nariz era fino e seus olhos eram de um azul muito claro. Suas vestes compridas eram também negras, mas ele não portava nenhuma arma.
    Sven avançou para encontrá-los. Estava sem camisa, vestindo apenas as calças e botas pesadas, além do amuleto de Moradin pendendo no pescoço. Ao se encontrarem, Sven estacou, limpou o suor do rosto novamente, e então sorriu para o trio.
   - Bom dia, senhores! Como posso ajudá-los?
   O líder do trio sorriu educadamente de volta.
   - Um bom dia ao senhor também, mestre anão. Meu nome é Jocelyn, morador do Distrito dos Templos. E o mestre seria...?
    - Sven. Dûr Sven. - o anão cuspiu no gramado - Apenas passeando pelos jardins? Ou procura algo que possamos oferecê-lo? Se deseja uma bênção de Moradin ou têm ferimentos a serem curados...
   - Oh, não, senhor clérigo, eu não ousaria distraí-lo de seu trabalho. É só que, bom, morando aqui tantos anos, eu nunca vi muito movimento neste santuário... e agora, vocês o estão reformando... fiquei curioso, é só...
   - Reformando E ampliando! - Sven deu um sorriso largo - Sim, por tempo demais o templo de Moradin ficou abandonado. Eu, como clérigo ordenado, tomei pra mim a tarefa de consertar a situação. Mas diga, senhor Jocelyn, você serve a algum templo específico aqui?
   - Pode se dizer que sim... em parte. - o homem deu um breve sorriso - Na verdade, sou uma ponte entre os templos aqui e o Duque. Por falar nisso, olha como vai alto o sol! Tenho que chegar à Fortaleza em minutos, senão vou ser chicoteado... - curvou-se ligeiramente para Sven - ...foi um prazer conhecê-lo, mestre Sven.
   - Igualmente! Passe aqui um dia desses. Em algumas semanas a obra estará pronta, venha ver como ficou!
   - Virei - prometeu o homem, piscando. Ele e seus companheiros se afastaram, marchando apressadamente.
   Sven retomou o trabalho, satisfeito de ter despertado a curiosidade dos moradores. Quem sabe assim poderia estabelecer um pouco de devoção verdadeira naquela cidade...
   - Quem eram aqueles? - perguntou Darsh, quando Sven se aproximou.
   - Moradores locais. Queriam saber o que estava acontecendo.
   - Suspeito - comentou Darsh, cerrando os olhinhos amarelos.
   - Eu o achei simpático
   - Humanos não são simpáticos, Sven, a não ser que tenham alguma boa razão para sê-lo.
   - Eu suponho que os orcs sejam genuinamente simpáticos, então?
   - Orcs nunca são simpáticos, mestre anão - Darsh abriu um sorriso lupino.

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   - Quatro Machados! De novo! Esse moleque é inacreditável! - reclamou o feiticeiro, jogando a mão de cartas na mesa.
   Oc deu um sorriso tímido e arrastou a pilha de moedas de cobre para o seu canto da mesa. Tom, Sven, Oc e Darsh estavam jogando um velho baralho garmuni que Thudar os emprestara, sentados na mesa da cozinha. 
   - Vocês usam símbolos engraçados - disse Sven, passando os olhos pelas diferentes cartas. - Espadas, Martelos, Machados e Flechas. Nós usávamos pedras preciosas lá na Ilha.
   - Em Fannard, são as armas das quatro maiores famílias reais - comentou Tom, sorvendo um gole de cerveja escura de sua caneca.
   - Ha! Olha só essa Sacerdotisa Orc! - mostrou a carta com uma feia caricatura de uma orc vestida em um manto comprido - Parece com você, Darsh!
   - Hilário. - respondeu o meio-orc, azedo - Além disso, orcs não têm sacerdotisas, só xamãs. E são sempre machos.
   - Mais uma, rapazes? - Tom esfregou as mãos - Precisamos recuperar o prejuízo que nosso grumete está nos causando.
   - Não, obrigado, - disse Sven, se levantando - deixei um preparo no fogo lá em baixo, preciso conferir se já está dando bolhas. Com licença.
   Sven tinha recentemente adquirido, por uma boa soma de ouro, um conjunto de instrumentos e materiais para preparar poções e óleos alquímicos. Estava sendo uma grande economia, pois agora ele podia infundir seus encantos curativos em bebidas e isso saía muito mais barato do que adquirir poções nos templos; no entanto, os odores gerados no processo eram tão terríveis que os companheiros o obrigaram a deixar a bancada de trabalho no próprio quarto, no subterrâneo.
   
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   O anão abriu a porta que dava da cozinha para os jardins, saiu e a fechou, rapidamente, sob o protesto dos que ficavam lá dentro; o vento cortante de outono entrara pela fresta, causando arrepios e ameaçando apagar o fogo na lareira. Sven parou um minuto para observar Aleena e Zhu Sie, sentadas na grama, no escuro, uma de frente para a outra.

   Uma semana atrás, Aleena convocara uma reunião geral da Companhia. Darsh, Sven, Drake e Tom e sentaram-se à mesa da cozinha para ouvir as palavras da moça:
    "A nossa anfitriã" começara Aleena, insegura "conversou comigo noite passada. Ela reconheceu... bom, isso não importa. Ela se aceitou me treinar como espadachim, então... eu pretendo ficar aqui. Por um tempo."
   Os companheiros se encararam. Ninguém falou por um tempo, até que Sven rompera o silêncio:
   "Por mim, tudo bem. Quer dizer, nós temos que levar o monge para o tal Templo do Sol Branco, mas... tem muito o que se fazer no templo de Moradin, aqui. Acho que dá pra esperar um tempo."
   "De quanto tempo estamos falando, Aleena?" perguntara o meio-orc.
   "Não sei. Quanto tempo precisar, eu diria". A moça parecia um tanto aborrecida com aquela conversa.
   "Eu também não me importo" dissera Tom "afinal, estou aprendendo um bocado com o senhor Boobeedabeetz. Quanto mais tempo gastarmos aqui, melhor."
   "Então está bem" anunciara Drake, dando os ombros. "Ficamos."

   Naquela noite, a mestra falava baixo com a discípula. Era a rotina que ambas tinham estabelecido: durante a manhã, Aleena trabalhava na manutenção da casa; após o meio-dia, ambas treinavam com armas (Zhu Sie instruindo a kortlani em diversos movimentos sutis e complexos com a espada de madeira que Aleena passara a usar). Durante a noite, ambas passavam horas conversando; pelo que Sven e outros entenderam, a senhora simulava histórias e situações e fazia Aleena sugerir ações para solucionar problemas.
   Sven sentia pena de Aleena: o treinamento estava longe de ir bem. Nas manhãs, a orgulhosa guerreira era rebaixada a trabalhar como a  mais baixa servente, e isso claramente a deixava irada (embora ela não ousasse reclamar). O treinamento físico era extremamente exigente: apesar de não requerer o vigor e a força que os exercícios kortlani tiveram-na preparado, Zhu Sie exigia uma perfeição e destreza nos movimentos que parecia estar além da capacidade da jovem guerreira. O pior era que ela não gritava ou ralhava: sempre com o mesmo tom baixo e reprovador, corrigindo o sem-número de erros cometidos por Aleena.
   Mas a noite da dupla era o que parecia deixar a moça mais esgotada. As situações elaboradas por Zhu Sie, apesar de simples, tinham várias respostas e a velha nunca parecia se satisfazer com o que Aleena respondia. A ruiva se sentia cada vez mais burra e incapaz, e Zhu Sie não parecia disposta a encorajá-la a melhorar. "Ela usa uma máscara por baixo da outra," brincara Drake, um dia, sobre a mesa de desjejum, fazendo alusão à expressão  imutável que sempre recobria o rosto queimado da velha anfitriã. E Aleena ficava cada vez mais frustrada com seu treinamento...

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   Os dias foram ficando cada vez mais curtos e frios. A época da colheita chegara, e junto com ela um enorme fluxo de carroças e diligências chegava diariamente pelo Portão do Ouro para entrar no Distrito do Trigo. As pessoas estocavam alimentos para o inverno, aproveitando os preços convidativos, e os padeiros e confeiteiros de Morhstarr preparavam deliciosas iguarias de outono. O treinamento de Aleena fez pouco progresso, enquanto os outros companheiros se mantiveram focados em suas próprias ocupações. Drake criou um hábito de sumir durante o dia e voltar, tarde da noite, com um sorriso presunçoso nos lábios ("Observando pássaros, Mestre Drake?" brincara Tom certo dia, fazendo o rapaz colorir de rosa sua pálida face). Mas ninguém na casa parecia mais satisfeito do que o anão: a reforma/ampliação do pequeno templo trazia um orgulho imenso para o sacerdote, que raramente era visto sem um amplo sorriso no rosto sujo.
   Seu ânimo estava exatamente assim numa tarde de trabalho. O feiticeiro se abstivera naquele dia, indo para a mata ducal para praticar seus segredos; assim, apenas Sven e seus empregados andavam pelos arredores do templo naquela hora. Ou, pelo menos, era o que ele pensava.
   Enquanto faziam uma pausa para comer uma braçada de broas com mel que Sven comprara, os pedreiros e trabalhadores avistaram um grande grupo de pessoas atravessando a estrada que levava ao templo.
   - Oh-oh - disse Gertrum, levantando os olhos da caneca de cerveja - Soldados.
   De fato, uma pequena companhia de soldados da Guarda da Cidade vinham marchando, vestidos em placas peitorais de aço e capas mostrando o Tritão de Morhstarr. À sua frente vinha o homem de nome Jocelyn, que a alguns dias visitara a obra, portando um pergaminho em uma das mãos. Sven levantou para cumprimentá-los.
   - Senhor Jocelyn! Mais uma vez, bem-vindo ao nosso humilde templo. Como posso ajudar a você e aos seus...
   - Dûr Sven - anunciou o homem, sem ao menos erguer os olhos do pergaminho que agora lia - Pela autoridade conferida em mim por Artim Daven III, Duque de Daven e Conde de Morhstarr, eu ordeno que você seja preso pelo crime de conduzir operações ilegais no território de Morhstarr. Homens, prendam-no.
   Os trabalhadores se entreolharam, chocados. Sven gaguejou.
   - O-o quê? V-você n-não pode...
   Os guardas retiraram seu martelo de guerra de seu cinto e algemaram o anão. Sven não parecia achar as palavras que procurara. Por fim, virou-se para Gertrum e disse:
   - Ache ajuda.
   E foi arrastado na direção da Fortaleza de Sidar.

O Mestre

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