quarta-feira, 22 de junho de 2016

Capítulo 11 - O Julgamento de Sven

   As masmorras da Fortaleza de Sidar eram úmidas e cheiravam à maresia. Tinham o aspecto sombrio e deprimente característico das instituições desse tipo; a falta de janelas tornava o ambiente escuro, e a única iluminação  provinha da vela na mesa do carcereiro principal. Sven, no entanto, não deixara se abater, e no momento pregava fervorosamente para o guarda, que tentava seu melhor para ignorá-lo.
   - "...Sete Gemas em minha coroa, assim como sete são os meus filhos! Sede bravo como o Rubi, gentil como a Esmeralda, sábio como o Ônix, devoto como a Safira, perseverante como o Diamante, confiante como o Topázio e esperançoso como a Ametista!" - Sven tomou fôlego - Ele disse assim para Thorund Mãos-de-Pilão, e Thorund ouviu. "Sim, Pai de Todos", respondeu ele, e pôs-se a construir o que seria o maior e mais próspero dos reinos do Norte. Pois o gigante Gargarkar estava morto e seu domínio de maldades tinha sido findado, e o Bravo Povo poderia viver em paz...
   O sacerdote foi interrompido por uma súbita claridade e pelo som da porta da masmorra se abrindo. Dois guardas uniformizados entraram e um deles anunciou:
   - Dûr Sven, o Duque o aguarda.
   - Graças a Fharlanghn e a todos os deuses - suspirou o carcereiro.
   - E a Moradin! - disse Sven, enquanto a porta de sua pequena cela era destrancada - Venha ao templo um dia desses, carcereiro, e poderemos continuar nossa conversa!
   O guarda fez uma cara de quem preferiria comer estrume a ouvir a mais um minuto de sermão, enquanto Sven era conduzido para fora das masmorras.

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 A sala de audiências para onde Sven fora levado era grande e quadrada. As vozes se calaram quando a porta fora aberta pelos guardas, e Sven foi empurrado com pouca cerimônia para dentro. Um tablado se estendia na parede oposta à entrada; ali, numa mesa, estava sentado o Duque Daven em pessoa, vestido ricamente em azul-claro e branco. Ladeando-o, estavam dois outros homens; o primeiro Sven não conhecia, mas suas longas vestes verdes e o grande amuleto de pedra cinzenta em seu pescoço denunciavam que era um sacerdote do Deus dos Viajantes, Fharlanghn, padroeiro da cidade. O segundo homem era Jocelyn, com suas vestes negras e um sorriso satisfeito no rosto.
   - O prisioneiro, Dûr Sven, o anão! - anunciou um dos guardas. Sven foi conduzido até o centro da sala, onde o sentaram numa cadeira de madeira talhada que tinha suas próprias algemas. Depois de o prenderem, recuaram até os fundos da sala.
   As laterais do aposento possuíam fileiras de bancos de madeira para os espectadores. Não eram muitos: alguns servos da Fortaleza, vários cavaleiros que serviam ao Duque, e um homem que sem dúvida era um nobre, pois se vestia em ricas vestes amarelas e negras e era acompanhado de um pequeno séquito nas mesmas cores. Não haviam janelas na sala, que era iluminada por braseiros nos cantos e um grande candelabro no centro.
   Sven não deixou de notar que nem os anões nem nenhum de seus companheiros estavam ali. Isso causou uma pontada de terror em seu peito.
   - Pelo poder investido em mim pelos deuses e pelos Arquiduques de Garmun, declaro iniciado o julgamento de Dûr Sven, o anão - disse o Duque, com um ar entediado. - Você é Sven?
   - Sim, senhor Duque, mas... - começou Sven, mas Daven o interrompeu.
   - Os velhos costumes requerem que um governante justo escolha dois homens de honra inquestionável e conhecimento da causa para julgarem um culpado ao seu lado. Para tal convoquei Lorde Jocelyn de Vau Vermelho, Capitão da Manopla Negra e Sacerdote da Fé de Hextor - Daven apontou para sua esquerda -, que também foi aquele que denunciou os crimes do acusado. Lorde Jocelyn, você aceita minha indicação de boa fé e jura, em nome dos deuses, fazer um julgamento verdadeiro e honrado do caso?
   - Eu aceito e eu juro, meu Duque de Daven - disse Jocelyn, os olhos ainda em Sven.
   - Indico também - Daven virou-se para sua direita - o Marquês Osmund, Arcebispo da Fé de Fharlanghn e Sumo-Sacerdote Ducal. Marquês, você aceita minha indicação de boa fé e jura, em nome dos deuses, fazer um julgamento verdadeiro e honrado do caso?
   - Sim, Duque Daven eu aceito sua indicação, e juro ser verdadeiro e honrado. - sua voz era rouca e fraca e seus cabelos eram ralos e brancos; no entanto, Sven não deixou de notar que seus olhos verdes eram cheios de vida. Pelo menos, pensou o anão, o velho não parecia nutrir má vontade em relação a ele...
   - Pois bem. Que o acusador então indicie os crimes por quais Dûr Sven...
   - ESPERE! - gritou uma voz esbaforida, atrás de Sven. O anão tentou se virar para ver quem falara, mas as correntes o impediram. Daven parecia aborrecido, enquanto Jocelyn contraíra os lábios numa expressão irada. Um pequeno sorriso enrugara a boca do Arcebispo Osmund.
   - Esse homem... digo, anão... é inocente, Senhor Duque! Por Pelor, eu estou disposto a jurar por ele! Não podem acusá-lo!- Sven se contorcia de curiosidade, pois não conhecia o dono daquela voz.
   - Padre Geris - disse o Duque, num tom duro - nós acabamos de começar o julgamento. Sven ainda terá chance de se defender. Agora, por favor, sente-se e permaneça em silêncio.
   - Sim, Senhor Duque. Mil perdões - respondeu o tal Geris.
   Um pequeno tumulto se deu enquanto o recém-chegado tomava sua posição, perto de onde o nobre de amarelo-e-preto sentava-se com seus criados. Junto a ele, Sven percebera, vinha o séquito de anões que trabalhavam para Sven, ainda vestidos como pedreiros. Todos se sentaram e, uma vez que se fez silêncio, Daven retomou o julgamento.
   - Jocelyn, tenha a bondade de fazer a acusação.
   - Senhor Duque - disse Jocelyn, encarando Padre Geris, ainda furioso -, o anão Dûr Sven é acusado de conduzir operações ilegalmente no território ducal. Especificamente, por alterar e profanar uma capela para algum deus menor, patrimônio do Duque de Daven...
   - Abismo negro! Profanar? DEUS MENOR?  - explodira Sven - Eu sou um sacerdote ordenado na fé de Moradin, o Pai de Todos, o Forjador de Almas! Eu estava reparando o templo, não o profanando, seu filho de uma...
   - SILÊNCIO! - disse Daven, vermelho - Dûr Sven, permaneça calado até o fim da acusação, a não ser que prefira desfrutar da hospitalidade de minhas masmorras até se sentir mais disposto a se comportar. Jocelyn, continue, e basta de interrupções.
   Sven engoliu, raivoso, mas nada disse. Jocelyn pigarreou:
   - Portanto, conforme estabelecido pelas leis do Ducado de Daven, aquele que depredar propriedade do Duque deve arcar com os custos dos reparos - no caso, desfazer as obras que vem ilegalmente conduzindo - e ser mantido em reclusão por dois anos nas masmorras do Duque.
   Os anões xingaram em sua língua, furiosos. Padre Geris, ainda fora do campo de visão de Sven, resmungava "Absurdo!".

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   - Silêncio! Isto é um julgamento, ou estou no maldito Mercado do Peixe? Silêncio! - Daven bateu na mesa com um punho fechado, calando os mais exaltados. - São essas as acusações, Lorde Jocelyn?
   - Sim, Senhor Duque.
   - Pois bem. Dûr Sven - disse o nobre, virando-se para o anão - É hora de sua defesa. Você nega as acusações?
   - Claro que nego! Eu não estou "profanando" ou "depredando" nada, Senhor Duque. Estou meramente reformando e ampliando o arremedo de templo que essa cidade devota a Moradin, maior dentre todos os Deuses. Se é propriedade do Duque, bom, nós anões temos mais cuidado e respeito com o que é nosso, ainda mais quando se trata de um templo de fé.
   Murmúrios nervosos correram pela audiência. O nobre de amarelo-e-preto franziu a testa e falou, em voz baixa, com um de seus pajens. Jocelyn deu um sorriso lupino, enquanto Daven estava muito vermelho.
   - Não tolerarei ofensas em minha fortaleza, anão. É a segunda vez que você me destrata em meu lar. Não haverá uma terceira. Lembre-se disso. - sua voz era fria, mas controlada. - Reparando, ampliando, o que seja - você estava conduzindo uma obra em propriedade alheia. Minha propriedade.
   Sven não tinha resposta a isso. Engoliu, em seco, achando que tinha ido longe demais. Para a sua sorte, Osmund, o sacerdote de Fharlanghn, decidiu intervir:
   - Senhor Duque, se eu posso... - Daven acenou com a cabeça para o Arcebispo, que continuou - Bom, não há como discordar que o anão em questão agiu sem a sua permissão, mas... ele e sua companhia não fizeram exatamente o mesmo ao entrar na Mina das Almas e recuperar a espada do senhor seu avô? E, naquela ocasião, o Senhor não os recompensou pelo feito?
   Daven calou-se. Olhou para o Bispo, respirando-o profundamente, refletindo sobre as palavras do velho. O Bispo seguiu falando:
   - Bom, eu não vejo tanta diferença entre aquela ocasião e esta. Ainda que estivesse organizando uma construção, o anão fez o que fez com o objetivo de melhorar a estrutura do templo, como ele mesmo afirma. E digo mais: o fez por fé e devoção ao deus que segue. O senhor seu pai e o pai dele antes dele sempre deram grande valor à fé de um homem, e é por isso que Morhstarr tem tantos templos e conta com serviços aos que nenhuma cidade no Norte pode se comparar. E não falo apenas do templo pelo qual sou responsável: Lorde Jocelyn, o templo de Hextor não é responsável por fornecer, anualmente, uma parcela de recrutas para a Guarda da Cidade?
   - Isso não vem ao caso! - a face de Jocelyn estava ligeiramente corada, sua expressão irada - Duque Daven, seus predecessores deram o devido valor à fé, é verdade, mas eles também deram valor à lei e a ordem, como o senhor indubitavelmente tem feito desde que recebeu o governo de Morhstarr do senhor seu pai. E a lei é clara: qualquer um que interfira, sem as devidas permissões, na propriedade do Duque ou de seus subordinados deve punido! De outra forma, qualquer um que agora se declare um fiel poderá modificar a estrutura dos nossos templos?
   Daven assentiu, lentamente. Parecia indeciso.
   - Eu lhe pergunto, Arcebispo Osmund - virou-se Jocelyn, com um olhar afiado nos olhos pálidos - não há entre os seus aqueles que desprezam templos? Que dizem que um verdadeiro sacerdote do Deus Viajante não deve nunca ter uma moradia fixa? Que diria se um desses demolisse o seu templo em nome de sua fé? Você o defenderia?
   - Que comparação infortuna! - disse Osmund, indignado. A audiência voltou a conversar, entre si, as vozes crescendo. Os anões xingavam Jocelyn em sua língua rascante.
   - Ordem! - bradou Daven, e mais uma vez fez-se silêncio. Daven estudou os juízes e o réu com cuidado, e então anunciou: - Já ouvi argumentos suficientes. Quero ouvir os julgamentos de cada um dos meus juízes. Suas considerações, Jocelyn. Seja breve.
   - Não há como não ser. Culpado.
   Daven assentiu. Virou-se para Osmund:
   - Senhor Bispo, sua vez.
   - Senhor Duque... peço ao Senhor que considere a situação do anão com cuidado. Acredito que ele tenha agido de boa vontade e em pura inocência, ele...
   - Sua sentença, Osmund.
   - Inocente.
   Sven lambeu os lábios. Um silêncio nervoso se abateu sobre a audiência, enquanto todos esperavam o Duque dar a sua própria palavra, a derradeira sentença de Dûr Sven. Daven gastou alguns momentos considerando a situação, coçando o queixo loiro. Finalmente, ergueu os olhos para Sven e a audiência.
   - Após considerar o sábio julgamento de meus juízes, cheguei a uma decisão. O anão Dûr Sven invadiu e alterou propriedade ducal sem autorização prévia, o que, de fato, é contra a lei. No entanto - anunciou, calando os protestos dos anões - vê-se que o fez movido pela fé e boa intenção, e sem noção de seu crime. Por isso, determino que o réu deverá pagar uma multa de cem peças de ouro para o Tesouro do ducado, a serem utilizadas para reparar o Templo de Moradin da melhor forma possível, por profissionais determinados pelos meus subordinados. Não haverá pena de reclusão. Este é o meu julgamento.
   Uma balbúrdia se seguiu a essas palavras. Os anões gritavam sobre um insulto a Moradin;
 os servos do castelo conversavam entre si, alvoroçados. A voz de Padre Geris se sobressaía ao tumulto, bradando "Senhor Duque! Senhor Duque, por favor!". Sven estava abalado: por um lado, escapara das masmorras, mas teria que abandonar a obra que dedicara a duras penas ao seu patrono, e ainda por cima teria que arcar com mais um salgado gasto em ouro. Sentiu o estômago se embrulhar e o rosto queimar.
   O Bispo Osmund parecia satisfeito com o resultado, mas não Jocelyn. Esse levantou-se de seu lugar e, antes que Daven saísse de sua cadeira, bradou:
   - SENHOR DUQUE!
   Silêncio se fez na sala. Todas as cabeças se viraram pra ele. Sven tremeu.
   - Um julgamento piedoso, digno de um homem justo. - disse Jocelyn, sorrindo de forma cruel - Mas me parece que nenhum dos lados ficou satisfeito com a solução. Permita-me, gostaria de humildemente sugerir uma alternativa.
   Os olhos de Daven se estreitaram.
   - E qual seria esta alternativa, Lorde Jocelyn?
   - Ora, esta é claramente uma questão de fé. Se existe um problema que tange o território dos deuses, por que não deixar que os próprios deuses resolvam absolver - ou condenar - o anão?
   - O que você quer dizer com isso?
   - Quero dizer, um julgamento à moda antiga, Senhor Duque - o sorriso de Daven se alargou - Dois clérigos armados, cada um lutando em nome de sua fé. Se o anão vencer, está absolvido; se perder, é condenado, de acordo com a pena que citei no início deste julgamento. O que acha?
   Daven ficou muito incomodado. Claramente, esperava que o assunto já tivesse se resolvido àquela altura. No entanto, parecia também considerar uma oferta justa. Por fim, anunciou:
   - Caso o réu aceite... pode ser feito.
   Todos se viraram para Sven. O anão engoliu em seco e umedeceu os lábios.
   - Eu tenho uma condição.
   Jocelyn ergueu as sobrancelhas, e Daven contraiu os lábios.
   - Se eu vencer - disse Sven, lentamente - significará que os deuses determinaram que eu estive certo o tempo todo, correto?
   - Sim - disse Daven, secamente.
   - O que também significa - disse Sven, mais confiante - que a acusação feita neste julgamento foi feita em falso... talvez até mesmo de má-fé?
   - O que você quer, anão? - indagou Jocelyn.
   - O que eu quero, senhor Jocelyn, é justiça. - disse Sven, com um sorriso - Caso vença, eu não apenas poderei concluir minha obra, como a igreja de Hextor vai pagar a multa que o Duque estabeleceu, e ela será usada para adquirir recursos para a construção do templo.
   Um silêncio mortal se abateu sobre a sala. Sven e Jocelyn se encaravam, em fúria. O Duque estava num tom perigosamente vermelho. Suspirando, anunciou:
   - Que seja, anão. Aceito suas condições. Aceitará o Julgamento da Fé?
   Sven se ergueu o máximo que suas correntes o permitiam.
   - Eu aceito.

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