quarta-feira, 2 de março de 2016

Capítulo 9 - Deerg

   Pardal cravou a adaga no couro da armadura de Drake. Puxou e empurrou a ferramenta, dilacerando o material.
   - Isso! - disse Sven - Agora retire a flecha, com cuidado. Se a ponta quebrar, será um pesadelo.
   Com um som úmido, Pardal puxou o restante da flecha que atingira o pulmão de Drake. O projétil veio empapado de sangue, e o homem tossiu e gemeu.
   - Agora nos libere, por Moradin. Preciso curá-lo.
   A moça se encaminhou para eles. Ela era muito bonita, pensou Thomas. Jovem, com um rosto em forma de coração e cabelos da cor do trigo, cortados na altura dos ombros; tinha uma expressão zombeteira nos olhos castanhos brilhantes, mas naquele momento suava e parecia tensa. Puxou duas ferramentas metálicas do bolso da calça e pôs-se a trabalhar nas fechaduras das correntes; em poucos instantes ambos estavam livres.
   - Rápido - disse ela - Temos pouco tempo até o mestre chegar aqui.
   Sven ajoelhou-se ao lado do amigo. Tocou no talismã de Moradin dado de presente por Thudar e murmurou febrilmente um cântico na língua dos anões, enquanto estendia sua outra mão sobre o corpo de Drake. Uma luz alaranjada, como as brasas de uma forja, iluminaram o ferido, concentrando-se em feixes nas feridas. As outras duas flechas, cravadas no rim e no ombro direitos, foram lentamente expelidas da carne como se alguém as empurrava por dentro. A luz se apagou lentamente, e Drake levantou-se gemendo.
   - Aaaaaah... - colocou a mão nas costas, tateando - ... o que... Sven... - Seu olhar encontrou o de pardal, finalmente; Drake levantou-se em um salto, apenas para cambalear e despencar, sentado - Você!
   - Eu - disse Pardal, se permitindo um sorrisinho maldoso.
   - O que você está fazendo aqui, sua víbora traiçoeira?
   - A "víbora traiçoeira" acabou de salvar nossas vidas. - comentou Thomas, levantando as sobrancelhas - Os bandidos queriam nos levar pro chefe deles depois que você decidiu que sabia voar, e foi ela que pediu para nos trazer pra cá.
   - Exatamente. - disse ela, sustentando o sorriso. - Mas agora não é hora de bater papo. O mestre vai chegar a qualquer momento, e vocês tem que dar o fora. Andem, peguem suas coisas, estão ali no canto.

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   Os três se armaram novamente e apanharam o restante dos pertences. Tom perguntou a Drake, curioso:
   - Quem é ela? De onde vocês se conhecem?
   - Conheci-a na estrada. Primeiro ela se fez de boa moça, tentando se aproximar de mim, mas depois descobri que ela só queria me matar para ganhar uma recompensa na minha cabeça. Acontece que eu sou um imbecil e salvei a vida dela, então acredito que ela esteja tentando pagar a dívida.
   - Eu entendo porque você a salvou - disse Thomas, sonhador, olhando para a bela Pardal de rabo de olho.
   Uma vez prontos, os três se viraram para a moça. Drake pigarreou.
   - Bom, então, considero sua dívida paga. Vamos dar o fora daqui.
   - Ainda não, bonitão, - respondeu ela - ou você acha que eu vou me ferrar as suas custas? Não senhor. Antes de saírem precisam fazer uma coisa.
   - O que é?
   - Relaxa, nervosinho. Você vai gostar. - Afastou os cabelos da nuca e se virou de costas. O velho Tom corou - Você vai me acertar aqui com o cabo da adaga. Forte o suficiente pra me derrubar. Depois disso vocês arrombam aquela janela atrás dos barris e corram como se não houvesse amanhã - de fato, não vai haver se pegarem vocês.
   - Acertar... você? - indagou Sven, confuso.
   - Isso mesmo. Com força, ouviu, Drake? Não como naquela nossa brincadeira lá na estrada. Coloque esses seus gravetinhos para funcionar.
    Foi a vez de Drake corar.
   - Espera aí, - disse Sven - porque vamos bater na moça? Ela não está do nosso lado?
   - Está, mestre anão - disse Thomas - mas se o resto da gangue dela achar que ela nos ajudou, provavelmente vão acabar com ela.
   - Ah - disse Sven.
   - Um conselho, Drake. - disse a moça - Nunca, nunca mais entrem no território das Andorinhas, ouviu? Eu detestaria ter que estripá-lo.
   - Mentirosa.
   Pardal riu gostosamente.
   - Charmoso como sempre. Aliás, gostei mais de você de cabelo curto.
   - Posso ter o prazer de agredi-la ou quer ficar batendo papo aqui o dia todo?
   - Tudo bem. - respirou fundo - Vai.
   Drake levantou a mão com o cabo da adaga apontando para a cabeça de Helen - ou, como aparentemente a chamava ali, Pardal. Ele mesmo respirou fundo, preparando-se para o golpe...
   ...mas foi interrompido com um brado vindo de fora da torre.
   - PARDAL! PARDALZINHO! ONDE ESTÁ MEU PÃOZINHO-DE-MEL FAVORITO?!
   Drake quase deixou cair a adaga de susto. A maçaneta da porta começou a virar.
   Sem dúvida, os três companheiros foram ágeis. Drake e Tom correram de volta para a parede e se sentaram com as mãos às costas, simulando estarem presos; Sven, lento e pesado, se jogou ao pé dos dois com as mãos debaixo do corpo.
   A porta se escancarou, e a figura que entrou fez com que o trio arregalasse os olhos e deixarem o queixo caiu. Um homem calvo, baixo e extremamente pálido entrou saltitando na sala, como se nunca estivera mais feliz na vida. Ele vestia uma diversos anéis, pulseiras, braceletes e cordões, todos de ouro e cravejados de pedras preciosas; cobria os ombros com uma pesada capa de pele branca e felpuda rajada de negro, sem dúvida pertencente a alguma fera poderosa em vida. O que mais achava atenção, entretanto, era seu rosto: sua boca era muito larga, como se tivesse sido aberta por um rasgo de orelha a orelha, e fora costurada nas extremidades, deixando a abertura propriamente dita no tamanho similar a uma boca normal; seus dentes, entretanto, eram muito alvos e iguais, pontudos como os de um tubarão. Seus olhos não eram menos impressionantes: eram completamente dourados, sem pupila, e brilhavam como moedas de ouro.
   O ser bizarro deu um amplo sorriso quando localizou Pardal correu até ela como uma criança e a abraçou, jogando-a pra cima. A mulher parecia extremamente séria e pálida, apesar da situação aparentemente cômica. Arrumou o cabelo e encostou-se na parede após ser colocada de volta no chão. O recém-chegado olhou brevemente para o trio e voltou sua atenção para Pardal novamente:
   - Minha pequetucha - disse ele, na sua voz grave e bem-humorada - quem são essas pessoas ali no canto e por que elas estão fingindo que ainda estão presos nas correntes?
   Os três se olharam. Pararam o fingimento e se levantaram, sem jeito.
   - São os invasores que Melrhasa capturou, mestre Deerg. Estive mantendo-nos aqui para o senhor...
   Deerg fez um gesto, e ela calou-se imediatamente. Drake ficou preocupado; nunca a vira tão submissa assim.
   - Eles escalaram a velha catedral de Heironeous e entraram no território sem convite?
   Pardal fez que sim.
   - Então eu só tenho uma pergunta para vocês. - Deerg virou-se para os três, mortalmente sério, e apontou um dedo branco como gesso para Sven - Por que em Baator você veio usando uma armadura completa? Atrapalha a escalar e fez um barulhão.
   Drake e Tom olharam para o líder dos bandidos, abobados. Sven praguejou:
   - Por que todos não calam a boca a respeito da armadura? Se o "senhor furtividade" aqui atrás - apontou para Drake - estivesse usando uma armadura de aço, não teria ficado igual um porco-espinho.
   Deerg jogou a cabeça pra trás e gargalhou.


   - Você é engraçado. Gosto de você. É realmente uma pena que vocês escolheram o lugar errado para estar hoje. Pardal, quero que você mate os três agora, e depois vamos conversar sobre a sua punição por ser uma viborazinha traiçoeira.
   Pardal engoliu em seco, e sacou a adaga do bolso. Sua mão tremia ligeiramente, e ela encarava o chão.
   - Espere - disse Tom, numa voz aguda - você não está falando sério!
   - Não pode mandar nos matar por tão pouco, seu demônio! - gritou, por sua vez, Sven.
   Deerg riu de novo.
   - Demônio? Não é a primeira vez que sou chamado assim.
   Isso despertou Drake. Dentre todos, ele era o que estava mais apavorado. Não tinha medo da dor, mas sim de encontrar seu fim agora: não podia morrer ali, num prédio abandonado, quando haviam tantas pessoas devendo-o. Não podia morrer antes de completar sua vingança. Mas Sven dera-lhe uma ideia.
   Drake se armou de seu sorriso mais sinistro e anunciou, em uma voz maléfica:
   - Você não sabe o que é um demônio de verdade, Deerg, ou seja lá que nome tenha. Pode me ferir com aço, mas eu voltarei dos Infernos de Baator e o caçarei, noite e dia, até que corvos estejam se alimentando de suas entranhas e larvas caiam de seus olhos vazios como lágrimas de morte! - e, dito isso, arrancou o seu amuleto encantado de forma exageradamente dramática.
   A forma física de Drake ondulou, como se eles o vissem através de um véu de água. Sua pele se tornou branca como o gelo, seus olhos ficaram completamente negros; pequenos chifres recurvados apareceram em sua testa, e um rabo pontudo desenrolou-se da base de sua espinha. Seu sorriso encheu-se de dentes pontudos e serrilhados. Aquela era sua forma verdadeira, sua forma de tiefling, fruto da mistura do sangue humano com a essência de um extra-planar maligno.
   Deerg passou quase um minuto em completo silêncio, encarando a forma terrível de Drake. Por fim, gargalhou novamente, dessa vez chegando a lacrimejar; deu tapas na perna e sentou-se numa cadeira, rindo demais para se aguentar em pé. Drake sentiu sua pose de "senhor das sombras" murchar diante do deboche.
   Quando finalmente parou de rir, o mestre dos ladinos levantou-se e limpou as lágrimas dos cantos dos olhos.
   - Devo admitir, rapaz, - disse, a voz trêmula de riso - que não esperava por essa! Logo aqui, na minha casa! Bom, só temos uma saída pra isso, não é? - virou-se para Pardal - Meu benzinho, levo-os de volta para o chão, sim?
   - O-o quê? - perguntou Drake, abobado. Sven e Tom pareciam tão assombrados quanto.
   - Não querem ir embora? Preferem ficar para o jantar? - perguntou Deerg , animado.
   - Embora. Embora. - disse Tom.
   - Então, podem ir! Vocês ainda tem muito o que fazer aqui nesta nossa bela cidade costeira, eu decidi. E, além disso, gostei do anão.
   Eles se encararam, ainda sem acreditar muito. Pardal se adiantou e abriu a porta, fazendo sinal para que a seguissem. Se encaminharam para ela, arrastando os pés. Quando Drake passou ao lado de Derrg, no entanto, o mestre sussurrou baixinho:
   - Mande um abraço ao papai quando o vir.
   Drake sentiu o sangue gelar, mas nada respondeu. Não arriscava olhar para trás.
   - Espere um minuto!
   Todos olharam para quem tinha falado. Era Sven.
   - Sven -  chiou Tom, apavorado - você-vai-matar-a-todos-nós-por-que-você-não-pode-calar-a-boca?
   Deerg olhou para o anão, ainda achando graça. Sven retirou um de seus braceletes de prata, presentado a ele em Kortlan por Jarl Rollo. Estendeu para o ser pálido, que pareceu surpreso.
   - O que é isso, anãozinho?
   - Um presente.
   Drake e Tom se entreolharam. O anão finalmente tinha enlouquecido.
   - O que foi? Esse cara é bem mais gentil do que a maioria das pessoas que encontramos desde que começamos a andar juntos. Eu estou de saco cheio de ser maltratado por todo mundo. Tome aqui, chefão do crime, é pra você.
   Deerg andou lentamente para o anão, maravilhado. Apanhou o bracelete e o examinou.
   - Infelizmente pra você, anão, eu não aceito caridade. Apenas trocas. - procurou dentro da capa e retirou de lá um grande rubi cor-de-sangue rachado, e o estendeu de volta para o anão - Tome aqui, um presentinho do Deerg pra você. Se estiver desesperado em algum momento... pise nele, entendeu?
   Sven quis perguntar o porque, mas decidiu descobrir por conta própria. Guardou o rubi no punho fechado e olhou para Deerg, obstinado.
   - Obrigado! - e se curvou brevemente, à moda anã.
   - Isso, isso. Agora sumam da minha frente.
   
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   Pardal guiara o trio por outro caminho. Desceram em telhados mais baixos, atravessaram passarelas e passaram por dentro de construções vazias. Por vezes cruzavam com pessoas vestidas como as demais Andorinhas, mas ninguém falava nada, só acenavam para Pardal.
   Por fim, saíram num pequeno beco no início do Distrito Baixo. Se viravam para Pardal e a agradeceram, e se encaminharam para a casa de Xhu Sie; Drake, entretanto, ficou pra trás.
   - Pardal! - chamou ele. A moça se virou pra ele, tentando manter o sorriso zombeteiro, mas sem muito sucesso.
   - Estou atrasada para um compromisso. O que é?
   - Eu... bom... sua dívida está paga. - Drake engoliu em seco.
   - Como se eu não soubesse disso, gênio.
   - Você... vai ficar bem?
   A moça levantou uma sobrancelha.
   - Se compadeceu da pobre vadiazinha traidora?
   - Você... tinha uma dívida comigo, mas salvou meus amigos também.
   A moça riu.
   - Tá tudo bem, bonitão. Pode dormir tranquilo e sonhar com bodes e pentagramas em paz hoje a noite.
   - Eu... gostaria de te pagar uma bebida, em agradecimento. Posso te ver depois?
   - Quem sabe, Drake. Quem sabe.
   O homem fez que sim com a cabeça. Ela andou alguns passos pra dentro do beco, mas virou-se, olhou por um tempo pra ele e gritou:
   - Ei, bonitão! Leva isso pro seu pivete!
   Arremessou um embrulho disforme para Drake. Espiando seu conteúdo, o garmuni viu um chapéu de marinheiro e uma bolsa de couro que tilintava com um som metálico. Quando olhou de volta para agradecer, ela tinha sumido. Alcançou os companheiros no caminho para casa.
   - Aí está você - disse o anão.
   - Consegui o chapéu - mostrou Drake.
   - Então era ela o tempo todo! Você tinha razão, Drake, é ela é do mal.
   Um silêncio se abateu sobre o trio. Os três refletiam sobre os acontecimentos, ainda incrédulos com o próprio azar e a própria sorte.
   - Noite estranha - disse o anão.
   - O chapéu mais difícil de obter na história. Por Obbadjah, deve ser mais fácil roubar a coroa de um rei.
   Sven o acompanhou nas risadas, mas não Drake. Tudo o que o rapaz pensava era na punição que aguardava a Pardal naquela noite...
   
Esse post é especialmente dedicado à Druida Que Fala com Árvores, nossa maior fã da vida real (sem contar os jogadores puxa-saco). Um abraço!
O Mestre

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