segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Capítulo 8 - As Andorinhas de Mohrstarr

   Clang. Clang. Clang. A cada passo de Sven, trajando sua mais nova armadura élfica, o metal chocalhava e ressoava pelas ruas iluminadas pela lua no Distrito dos Templos.
   - Pelos grandes espíritos, - disse Thomas. Ele vestia sua silenciosa cota de mitral por baixo das roupa leves, carregando apenas sua lança (também élfica) - achei que uma armadura élfica fosse mais discreta do que isso.
   - Não é só a armadura. - chiou Drake, nervoso. Levava seu arco e uma aljava cheia de flechas, e vestia uma capa escura com o capuz a cobrir seu rosto - O maldito clérigo anda como um ganso manco. Eles nos vão ouvir chegando há meia milha de distância.
   - Calem a boca, vocês dois - irritou-se Sven. Anões não eram bons em incursões silenciosas na noite, e mesmo que a armadura fosse mais leve do que o normal, isso não impedia que Sven fizesse uma cacofonia desnecessariamente alta ao andar.
   Vagaram pelas ruas do Distrito dos Templos enquanto Tom procurava identificar o local até onde seguira a jovem loira que havia reconhecido como a ladra que atacara Oc em seu primeiro dia na cidade; no entanto, estava achando difícil achar o local novamente.
   - É diferente à noite - reclamou o velho, enquanto Drake protestava.

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   O Distrito dos Templos era relativamente vazio após o crepúsculo. Tinha poucas tavernas, e, portanto, seus moradores (basicamente sacerdotes, acólitos, noviços e aqueles que os prestavam serviços) preferiam escapar para o Distrito da Prata quando tinham sede de álcool ou diversão. Era um local diferente do abarrotado Distrito da Prata ou das ruas estreitas do Distrito Baixo: os Templos ficavam entre ruas amplas, calçadas em pedra lisa, cercadas por um sem número de mini-bosques, laguinhos artificiais e pequenos riachos que corriam preguiçosamente. Jardins floridos abundavam, com grandes mariposas peludas voando sobre as damas-da-noite, seu cheiro doce enchendo os pulmões dos passantes. Era, sem dúvida, o local mais bonito da cidade.

   Após três quarto de hora vagando aparentemente sem rumo, Tom soltou uma pequena exclamação:
   - É ali! Aquele prédio, que parece uma catedral abandonada. Vamos lá!
   O trio se adiantou na direção da construção. Realmente era uma velha catedral, feita em pedra escura; possuía quatro torrinhas quadradas e sua fachada era decorada, no alto, por um vitral contendo a imagem de um punho branco segurando um feixe de relâmpagos. Alguém atirara pedras no vitral, rachando-o em vários locais. A porta dupla de entrada estava pregada com tábuas para impedir o acesso.
   - Agora... vamos ver... - Tom coçava o queixo gordo - ...é ali, bem ali. Naquela casa construída diretamente sobre o muro.
   Foram até o local designado. Várias casas, também com a aparência largada, tinham sido construídas adjacentes aos muros da catedral. Possivelmente tinham habitadas pelos serviçais que serviam ao deus ao qual a catedral era dedicada, mas agora estavam abandonadas. Circundaram uma das casas maiores e acharam um beco estreito que terminava de frente para a parede da catedral.
   - Não consigo ver nada. - lamentou-se Tom - Esperem um pouco, vou produzir um pouco de luz...
   - Não seja idiota! - disse Drake, bruscamente - Se você acender luz aqui, junto com nosso amigo, o chocalho-gigante, nós não vamos encontrar ninguém aqui. Seria como se um farol entrasse gritando e pulando no esconderijo dela. Eu e Sven conseguimos enxergar bem no escuro, nós encontraremos o caminho.
   Tom deu de ombros. Sven e Drake começaram a inspecionar os arredores, buscando uma forma de subir. Não demorou até que o anão, acostumado a trabalhar a pedra, achou o que estavam procurando.
   - Aqui, Drake, Tom! Alguns tijolos foram retirados aqui, subindo a parede. Formam uma escada improvisada. Aposto que alguém com pés pequenos consegue escalar esse muro sem problema.
   - É verdade. Tom, fique de guarda na entrada do beco, e avise se algum guarda ou curioso aparecer. Vou subir primeiro e faço sinal para vocês dois.
   - E como eu vou subir no escuro? - reclamou Tom.
   - Sven o ajuda. Os intervalos entre os buracos são regulares. É só ir com calma e ninguém se fere.
   O velho não gostou nada da ideia, mas, como não pensara em nada diferente, decidiu colaborar. Foi até a abertura entre as casas que formavam o beco e ficou atento, mas as ruas estavam completamente desertas ali. Sven guardou a base do muro enquanto Drake começou a subida.
   O ladino se surpreendeu prazerosamente com a facilidade da escalada. Descobriu que, além da precisão no espaçamento entre os buracos de tijolos, alguém escavara uma ranhura funda na face inferior interna das aberturas, conferindo um apoio excepcionalmente estável para os dedos das mãos. Rapidamente, seus braços e pernas esguios e ágeis o impeliram pelo muro da catedral como uma aranha, e em um minuto ele estava nos telhados do prédio, em pé nas grandes telhas de alvenaria.
   Deu um assovio leve para o xamã, e Tom entrou de novo no beco. Para a sorte dos três, não estava chovendo, e uma névoa leve impedia uma visão clara do topo do prédio; assim, mesmo que um guarda da cidade olhasse diretamente pra cima, seria praticamente impossível identificar algum deles... a não ser que a armadura espalhafatosa de Sven reluzisse as chamas de alguma tocha.
   Os olhinhos negros de Sven eram tão penetrantes no breu quanto os de Drake, então ele ajudou Tom a encontrar os primeiros apoios no escuro. O xamã começou a escalada com certa insegurança, mas se acostumou rapidamente com a regularidade da subida e em breve atingira a metade do percurso.
   - Cuidado para não cair, velhote! - disse o anão, num grito reprimido.
   - Cuidado você, anão. - resmungou Tom, alto o suficiente para Sven ouvir lá debaixo - Se você cair daqui com essa carapaça de ferro, vai se esborrachar feito fruta madura. Avance devagar e com calma, a subida não é dura.
   Quando Sven viu a forma de Tom sumir na névoa, quase vinte metros acima, começou a própria escalada. Os agouros não foram sem razão: suas mãos e pés com dedos curtos eram inapropriados para se apoiar nas aberturas, e a presença da armadura completa não ajudava em nada; além disso, ainda que os anões conseguissem carregar quantidades prodigiosas de peso sem se cansarem como os humanos, a armadura élfica o puxava pra baixo e fazia com que cada impulso queimasse seus braços e pernas. Por mais de uma vez pisou em falso e quase caiu, cravando os dedos metálicos de sua manopla na pedra para não se estabacar no chão duro. Na terceira vez cuspiu um xingamento alto o suficiente para ser ouvido na casa de Thudar.
   - Cale a boca, anão maldito! - sibilou Drake, furioso, enquanto buscava perigo nos arredores.
   Nos metros finais, Tom esticou a ponta de sua lança para Sven e o ajudou a vencer o restante do percurso. O anão se jogou no chão, ofegante.
   - Pelas barbas de Moradin! Que subida maldita!
   - É por isso que não se caminha nos telhados usando uma maldita armadura completa, seu imbecil - rosnou Drake.
   - Ah, vá pular num lago, seu garmuni filho-da-mãe.
   - Vocês talvez prefiram terminar essa conversa depois, cavalheiros. Temos companhia. - anunciou Tom, numa voz grave.
   Sven sentou-se imediatamente, segurando o martelo preso ao cinto. Drake retesou-se e preparou-se para puxar o arco, mas interrompeu seu movimento ao ver o que o aguardava.


   Não era a loira misteriosa. Aliás, poderia até ser ela, mas não era possível distingui-la entre as mais de vinte formas que os acuavam na beira do telhado. Homens e mulheres, vestidos com capas e mantos negros, portavam lâminas, espadas e machadinhas, prontos para atacar em qualquer momento. Além disso, em cima da torrinha mais próxima, sete arqueiros faziam pontaria sobre o grupo.
   Uma mulher baixota e feia, de rosto redondo e nariz quebrado, aproximou-se. Ela portava uma lâmina do tamanho de seu antebraço, curva e reluzente como a morte.
   - Visitantes - anunciou, dando um sorriso que revelou dentes tortos e amarelados. Os outros riram maldosamente.
   - Que estão procurando aqui em cima, bonitões? Ovos de andorinha? - gritou uma voz feminina esganiçada à esquerda do grupo. Os bandidos riram mais alto.
   - Vamos levar nossos visitantes ao seu anfitrião, então? - disse a mulher feia - Peguem as armas deles e amarrem-nos. E vocês - apontou para Sven com a faca comprida, enquanto o anão tentava se levantar, martelo na mão direita - não ousem resistir, ou enchemos vocês de flechas até ficarem iguais a ouriços-do-mar.
   Tom suspirou, derrotado. Até mesmo Sven, vestindo sua armadura dourada, via que não podiam ganhar aquela luta sem os feitiços destruidores de Darh ou a força mortal de Aleen; se sentiu extremamente tolo e ficou furioso por ser derrotado com facilidade. Preparam-se para entregar as armas para os agressores e aceitar a sorte que lhes seria imposta. Com a exceção Drake.
   Desde que vira os inimigos, seu instinto de sobrevivência gritara com toda a força. Sua mente afiada calculara as chances que tinha se puxasse o arco e atirasse: poderia matar dois, talvez três arqueiros, antes que o primeiro bandido chegasse à distância de corpo-a-corpo; se puxasse a adaga e avançasse evitaria a artilharia, mas não havia como durar muito em combate contra duas dúzias de homens armados, mesmo com a ajuda dos outros dois. Portanto, restavam duas alternativas: se render ou tentar fugir.
   E ele já estava de saco cheio de ser subjugado. Pulou.
   E uma dor aguda lancinou suas costas; sua visão ficou escura antes que atingisse a plataforma onde pretendera pousar.

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   Sven e Tom não acreditaram quando Drake pulou da beira do telhado. Ele era ágil e moveu-se como uma serpente nas sombras, mas os arqueiros eram mais rápidos ainda. Sete flechas assoviaram, cortando o ar, e um baque surdo abaixo denunciou sua queda. Sven urrou e Tom ficou parado, boquiaberto, encarando o abismo negro. A mulher de rosto redondo anunciou secamente:
   - Que imbecil. Vejam se ele morreu mesmo. Acho que umas quatro flechas atingiram seu alvo, mas ainda assim é bom se precaver.
   Três homens passaram com passos leves na frente dos dois companheiros e desceram a escada escavada no muro. Outros quatro se aproximaram sorrateiramente por trás e seguraram Sven e Tom; o anão tentou atacá-los, mas a chefe apontou a lâmina para o velho xamã:
   - Já perdeu um amigo hoje, anão. Quer perder outro?
   Aquilo pareceu arrefecer um pouco seu ânimo e ele entregou seu martelo. Sua face estava vermelha como um rabanete e seus olhos brilhavam em fúria plena, mas ele não ousava arriscar a morte de Tom. Os bandidos retiraram seu martelo e a lança de Tom, e os prenderam nos pulsos usando correntes grossas. Os integrantes do bando caçoavam deles no processo, rindo e fazendo piadas.
   - Que tipo de imbecil sobe na Cidade Alta usando uma armadura de batalha completa? - disse um homem caolho, batendo na ombreira de Sven com o cabo de sua machadinha e fazendo-a ressoar baixo. O anão apenas o encarou, quase babando de raiva.
   Depois de alguns minutos, os três homens que desceram chegaram novamente ao telhado, dessa vez por algum caminho alternativo. Traziam nos ombros a figura magra e desacordada de Drake e o arremessaram nas telhas com descaso; três flechas estavam cravadas nas suas costas.
   - Não morreu, chefe - disse um homem pequeno e careca, com um sorriso malvado - Mas está quase. E olha que punhal magnífico ele tinha! Vou ficar pra mim.
   - Não vai, não. - disse a mulher, dando um passo a frente - Os espólios vão para o mestre junto com os prisioneiros. Ele lhe dá a adaga depois se julgar que deve.
   O homenzinho encarou a mulher e parecia que ia protestar, mas acabou por grunhir e colocar a arma de volta no cinto de Drake.
   - Levantem esse saco de palha e vamos levar esses imbecis. Já ficamos aqui tempo demais. - ordenou a mulher feia.
   - Espere! - gritou Sven, irado - Deixe-me ao menos curá-lo primeiro. Se o sangue encher seus pulmões, ele pode morrer. Seu chefe não ia querer saber que vocês deixaram um prisioneiro morrer, não é?
   De fato, duas das três flechas estavam espetadas nas costas de Drake, sugerindo perigo imediato. Mas os bandidos simplesmente riram do pedido de Sven.
   - Curá-lo? - perguntou a mulher, chegando perto do anão - Que quer dizer com isso?
   - Sou um sacerdote de Moradin! Minhas mãos podem restaurar os ferimentos de um homem!
   - Você sabe conjurar feitiços, é isso? - perguntou a mulher, curiosa.
   - Sim! Eu sei!
   - Obrigado por avisar. Amordacem ele, não quero nenhuma surpresa desagradável.
   O rosto de Thomas era uma máscara de desespero. Sven estacou, pasmo, enquanto um homem grandalhão enfiou um bolo de pano amassado dentro de sua boca, impedido-o de falar. Estava agora completamente à mercê de seus inimigos.
   - Tudo pronto? Vamos levá-los. Para o esconderijo, então.
   - Ainda não, Melrhasa!
   Uma figura esguia vinha andando apressada pelo telhado. Vestia-se como os demais, mas seu rosto era oculto por um capuz negro. Os bandidos pararam imediatamente o que estavam fazendo e olharam para a mulher feia.
   - O que disse, Pardal?
   - Eu disse - respondeu a recém-chegada, arquejando. Sua armadura de couro escuro delineava seu corpo de forma quase sensual, e ela tinha uma postura provocante - ainda não. Não vamos levar esses prisioneiros para o mestre agora.
   - Você perdeu a noção, garota? Além de questionar minha autoridade ainda quer privar o mestre de espoliar invasores? Você deve estar querendo muito morrer.
   A moça esguia respirou fundo e respondeu, de forma comedida, em sua voz melodiosa e zombeteira:
   - Não estou questionando a sua autoridade, Melrhasa. O mestre está ocupado agora, e você sabe bem disso. Você vai interromper a diversão dele para mostrar três debiloides que subiram no telhado? Caramba, você deve querer muito impressionar o mestre.
   A moça feia inchou de raiva. Os homens olhavam de uma para outra, perdidos.
   - São invasores! Invasores! O mestre vai querer interrogá-los urgentemente, para depois matá-los! Podem ser espiões dos Ratos, ou do Duque!
   - Espiões? - Pardal jogou a cabeça pra trás e gargalhou - Um deles está usando armadura, Melrhasa! Abra os olhos. Leve-os para o meu ninho; confinamos eles lá e então você vai chamar o mestre. Prometo que você fica com toda a devida glória - acrescentou ela, fazendo uma reverência exageradamente cômica.
   A moça feia ainda estava raivosa, mas ponderou a proposta. Por fim, deu a ordem de má vontade.
   - Levem essa escória para o ninho da Pardal, então - e cuspiu no chão.
   O grupo levou os três pelo telhado com passos leves e ligeiros. A zombaria parara desde que pardal chegou, dando lugar a um clima sombrio; Tom e Sven olhavam preocupados para Drake, carregado como uma saca de grãos; vez e outra o homem tossia e gemia de dor. O grande grupo atravessou os telhados da catedral, passando para uma construção adjacente; de lá foram para outro prédio, e outro, e outro. Quando as construções não se tocavam diretamente, traves de madeira conectavam os telhados, permitindo a passagem. Tom olhou o mar de telhas que cobria a região sul do Distrito dos Templos até tocar o Distrito da Prata, e entendeu o motivo do nome "Cidade Alta": os proscritos podiam facilmente habitar aquela zona vazia e ampla.
   Em algum momento, chegaram a um conjunto de construções que encerravam um prédio comprido de vários andares, de aparência de decrépita. Sven percebeu que o prédio tinha sido encerrado pelas construções mais novas ao redor, impedindo seu acesso à rua e constituindo um excelente esconderijo. Os três prisioneiros foram conduzidos para dentro de uma janela quebrada, seguidos por Pardal.
   - Guarde-os com a sua vida, Pardal. Vou buscar o mestre - disse Melrhasa.
   - Guardarei - disse Pardal, zombeteira.
   O bando seguiu com Melrhasa. Quatro homens ficaram pra trás, guardando a entrada do prédio. Os três foram encaminhados para dentro de um aposento dentro da construção; Pardal entrou na sala com eles e trancou a porta por dentro. Virou-se para eles e os observou demoradamente. Por fim, soltou um longo e cansado suspiro; sacou uma faca fina do cinto e anunciou, em alto e bom som, para o pavor dos três companheiros:
   - Hora de acertar as contas.

O Mestre
  

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