segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Capítulo 14 - Reforjado

   Quando os companheiros de Sven se lembravam daquele confronto, o último golpe trocado entre os oponentes tinha sempre destaque na memória. Sven vencera a luta copiando o movimento que o próprio Ronnet usara antes para desarmá-lo: ao fingir golpeá-lo no queixo, de baixo pra cima, o anão desviara o martelo no último segundo, atingindo a manopla negra que segurava o mangual flamejante. 
   Por sorte, o comprimento e a fluidez das correntes fazia com que o arco das bolas de ferro fossem muito mais demorado do que o rígido martelo do anão, e cada osso da mão de Ronnet ficou completamente esmigalhado no movimento. O mangual desceu de forma totalmente errônea, atingindo Sven no ombro esquerdo; entretanto, embora as chamas mágicas causassem uma mossa semiderretida na armadura élfica, o golpe fora fraco, e o anão saíra do confronto ileso enquanto a arma do oponente caía no chão.

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   Depois disso foram segundos até que o elemental de Sven chegasse até Ronnet e o atingisse com força nos flancos, lançando o já ferido soldado no chão. Ele tentara se levantar, apesar do rosto feio estar torcido de dor, mas nessa hora o Duque decidira que tinha visto o suficiente. As trombetas soaram, o combate foi dado como finito e Sven fora declarado vencedor. O Duque anunciou, em voz alta, que as medidas previamente acordadas seriam respeitadas e a reforma no Templo de Moradin estava legalizada (e agora seria custeada pelo tesouro do Templo de Hextor). Muitos na multidão aplaudiam - os anões pulavam de alegria, os membros da Companhia gritavam - mas não poucos saíam da arena quietos e mal-encarados. Obviamente, entre estes estavam Jocelyn e os demais membros do Templo de Hextor.

   Sven removeu o elmo e caminhou até o inimigo, que estava ainda de joelhos - passada a adrenalina, parecia não ter força nem para se levantar. O anão não deixou de reparar que nenhum de seus companheiros viera ajudá-lo, seguindo Jocelyn para fora da arena no instante que o Duque anunciara o fim do embate.
   - Você lutou bem, amigo - disse o anão, com um sorriso cansado, esticando a mão para o oponente.
   O homem ruivo deu um olhar de orgulho ferido para o anão, sangue ainda brotando do nariz esmagado e chovendo por seu queixo e peito.
    - Aos Nove Infernos com você, anão - disse ele, entre dentes. - Isso não vai ficar assim, espere e verá.
    Sven recolheu a mão e deu de ombros. Deu as costas para Ronnet e foi até os amigos, que esperavam em um silêncio tenso; ao vê-lo sorrir, no entanto, retornaram à balbúrdia e o abraçaram.
   - Me larguem, seus malditos! - riu Sven, tentando se  livrar do abraço-de-urso de Darsh, que o erguia no ar com armadura e tudo.
   - E então! - disse Tom, todo sorriso - Que vamos fazer agora?
   - Beber! - disse, em voz alta, o anão Gertrum - Eu e os rapazes conhecemos uma ótima taverna - o dono é kortlani, tem o hidromel mais forte que os humanos conseguem fazer!
   - Beber, então! - disse Sven, dando um sorriso desdentado.

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     Os anões os levaram a uma pequena hospedaria no Distrito da Prata, um lugarzinho apertado e esfumaçado de nome "O Berrante de Guerra". O dono era realmente kortlani, um velho grisalho de um olho só que alegava ser um mercador aposentado, embora Sven desconfiara que ele na verdade tivesse sido um saqueador. De qualquer forma, o grupo barulhento pediu quantidades absurdas de hidromel e cerveja escura, além de um boi assado inteiro - os anões tinham um apetite tremendo.
   Foi um daqueles raros momentos em que todos os problemas e preocupações desaparecem temporariamente. Tudo que importava era comemorar a vitória de Sven (e, para os anões, de Moradin). Tom bebeu até desmaiar sobre uma das mesas, roncando sonoramente e acordando de vez em quando, com um olhar assustado. Darsh deixou de lado a carranca habitual e abriu um sorriso largo e pontudo (que, na opinião de Drake, era ainda mais assustador). Drake tentou se misturar aos anões, vangloriando de seus grandes feitos, e conseguiu fazer metade da audiência dormir. O próprio Sven ficou sentado, sentindo-se em paz consigo mesmo, enquanto os companheiros frequentemente o cumprimentavam pela vitória ou davam palmadinhas em suas costas.
   O Sol já se punha quando, finalmente, o grupo decidiu ir pra casa. Tropeçando e conversando em voz alta, assustando os transeuntes, os amigos se despediram dos anões e seguiram para a casa de Zhu Sie.
   - Droga - disse Sven, depois de um tempo.
   - Que foi? Vai vomitar? - perguntou Drake.
   - Não... eu só... Infernos, eu queria que o Amakiir estivesse aqui.
   - Ele ia fazer uma bela música sobre sua vitória, Sven, ia sim - disse o feiticeiro, olhando os céus, sonhador.
    - Quem... quem é esse tal de Amakiir, mesmo? - disse Thudar, o paladino, tropeçando nas palavras.
    - Príncipe élfico - disse Darsh.
    - Um bardo, dos bons - disse Drake.
    - Meu amigo - disse Sven, deprimido.
    Um silêncio incômodo se abateu sobre o grupo. Eles trotaram em silêncio por alguns minutos até que, subitamente, um assovio desafinado se fez ouvir entre os camaradas. Todos se viraram e viram Drake, portando sua flauta doce feita de osso, tentando sofregamente compor algum tipo de melodia.
    - "Estavam na arena, o anão e o... vilão." - entoou ele, soprando mais algumas notas horrivelmente incômodas - "E ele o enfrentou... com o martelo na mão."
   - Grande espírito. - xingou Tom.
   - Alguém tome a flauta dele - disse o meio-orc, fazendo uma careta.
   - "QUANDO O DESAFIARAM, ELE DISSE: SIM!" - e mais notas furiosas vieram da flauta do ladino - "E LUTOU COM FÚRIA... COM... fúria..."
   - "Pelos pentelhos de Moradin" - disse Sven, sorrindo desdentado.
   O grupo gargalhou, a tensão se dissipando. Drake parecia que ia insistir em completar a música, mas o feiticeiro ameaçou guardar a flauta um lugar pouco agradável, e o grupo percorreu o resto do caminho em um silêncio tranquilo.
   Chegaram à casa ainda animados, mas a euforia rapidamente se arrefeceu ao se encontrarem com Aleena e Zhu Sie. A ruiva acabara a prática com espadas e ia banhar-se para o treinamento filosófico com a mestra, e, pela sua expressão, ainda não conseguira progredir em nenhuma das atividades. Pior, parecia especialmente magoada por perder a luta de Sven e se irritara com a alegria (e o estado etílico) do grupo, não pedindo nenhum detalhe do evento; quando Tom tentou pegá-la pelo braço, chamando-a para juntar-se à festa no quintal, a moça pareceu que ia esmurrá-lo na cara. Isso só piorou tudo, pois Zhu Sie a repreendeu secamente por perder a calma tão fácil, e Aleena, bufando, jogou as espadas de treino no chão da cozinha e subiu as escadas pisando duro. A anfitriã não disse mais nada, e seguiu a discípula calmamente.
   - Vamos, - disse Thudar, constrangido - tem um barril de cerveja anã legítima lá atrás da forja.
   O grupo concordou, e saíram de fininho para o pátio interno da casa.
   - Vamos ver - disse Thudar - eu acho que estava bem... khazûn, eu esqueci a forja acesa!
   De fato, vivas chamas brilhavam na forja, iluminando a escuridão do pátio com uma luz alaranjada. Se reuniram ao redor do aparelho, para averiguar. Sven, coçando a cabeça, indagou:
   - Como o fogo teria durado tanto sem que ninguém o alimentasse? Quem sabe Zhu Sie não tenha... UAAAH!
   O anão saltara para trás, assustado, e não fora o único. Um clarão iluminara a forja, e o fogo vermelho se tornara verde e brilhante, se levantando até quase tocar as telhas que o abrigavam. Darsh largara o cajado, de susto, enquanto Tom tropeçara e caíra sentado, xingando em Fennardien. Drake tentava desesperadamente sacar sua adaga da bainha, e Thudar só encarava o fogo, de boca aberta.
   O fogo rugiu, e uma forma brilhante pareceu brotar de seu interior. A Companhia se afastou, incapaz de reagir. Uma sensação esquisita brotava no peito dos presentes, algo como um calor morno e agradável, como se nada mais pudesse dar errado em suas vidas. Sven e Thudar, em conjunto, reconheciam a presença gloriosa de Moradin nessa sensação, mas havia algo mais... era como ouvir uma música familiar tocada por um instrumento que nunca se ouvira antes...
   O ser que emergia das chamas tomava uma forma humanoide baixa. Caminhou lentamente, descendo da forja para o chão, e as chamas que o compunham se arrefeceram, até mostrar suas feições. Sven balbuciava, incapaz de expressar-se, enquanto Thudar se ajoelhou. Um a um, os demais o imitaram - todos compreenderam que aquela presença não podia ser a de um mortal.
   - Dûr Sven - disse o ser, numa voz grave e doce - levanta-te, por favor.


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   Era a criatura mais bela que Sven já vira em sua vida. Parecia, em todos os aspectos, uma anã - embora sua aparência traía uma ascendência que só podia ser considerada divina. Suas roupas eram simples, verdes como as chamas, mas tinham um brilho estrelado próprio que lhe dava um aspecto magnífico. Seus longos cabelos castanhos não eram trançados, e tinham também pequenas estrelas verdes que brilhavam como cristal polido. Suas feições tinham a força dos anões, mas também mostravam um quê de angelical, uma pureza tremenda. E seus olhos, ah - eram esmeraldas puras, e reluziam como se pequeninos faróis se iluminassem por trás deles.
   Uma grossa lágrima escorreu no rosto de Sven. A entidade sorriu de forma doce.
   - Por que choras, Dûr Sven? Sabes quem sou?
   Sven engoliu um bolo na garganta, emocionado.
   - Eu te reconheço das esculturas, Senhora... você é Skarri, a Esmeralda, não é?
   - Estás correto, Sven. Sou Skarri.
   Skarri era uma dos chamados Sete Primogênitos de Moradin (por vezes também conhecidos por Sete Gemas). Cada um destes representava um aspecto do deus, e funcionava, para os clérigos, como patrões e intermediários entre os devotos e a divindade. Skarri, especificamente, era talvez a mais benevolente dentre os Primogênitos, pois representava a Cura, a Renovação, a Bondade e a Generosidade.
    Skarri, em seu esplendor esmeralda, dirigiu-se mais uma vez ao seu devoto.
   - Sabes por que estou aqui, Sven, filho de Moradin?
   - Não, senhora, perdoe-me, mas não sei... fiz algum mal? O Pai está descontente comigo?
   Skarri riu um riso grave e melodioso que trouxe lágrimas aos olhos de todos os presentes.
   - Meu bom Sven, não digas bobagens! O Pai me enviou pelo motivo justamente contrário. Tu, meu querido, fizestes jus ao cargo que te foi concedido. Hoje provastes, de forma gloriosa, tua devoção e tua fidelidade à fé do Pai. É para isso que Ele me enviou aqui, Sven. Para agradecer a ti por tuas ações.
   Sven agora chorava copiosamente. Aquela era a maior honra que um clérigo poderia receber - menor apenas, talvez, do que ver seu deus em pessoa.
    - Oh, Skarri... eu não sou digno... sou apenas uma ferramenta nas mãos do Pai...
    - Querido Sven, humilde Sven! - disse Skarri - Ouve minhas palavras. O Pai ama e concede suas bênçãos a todos àqueles que dedicam suas vidas à fé de Moradin. No entanto, existem aqueles, como tu, que se fazem merecedores de uma atenção única, tamanha é a glória que trazem, através de suas ações, ao nome do Pai. A estes, Moradin envia um dos Primogênitos para que tomem seus servos sob proteção. E a ti o pai escolheu enviar-me Sven.
   - Oh, Senhora... - Sven lutava para não cair de joelhos - ...como posso jamais pagar esta dívida contigo e com o Pai?
   - Não há dívida alguma, querido Sven. Basta que tu aceites a decisão do Pai e jures-me serviço aqui e agora, e para sempre vigiarei-te e protegerei-te. - disse Skarri, ainda sorrindo - Se, é claro, for a tua vontade.
   - Como poderia não ser, Senhora? - disse o anão, caindo de joelhos. Estendeu seu martelo nas duas mãos para a semideusa, e fechou os olhos por algum tempo. Abriu-os, e entoou prontamente: - Ó Skarri, Esmeralda de Moradin, a Mão que Cura, Senhora dos Aflitos, Salvadora dos Desesperados, Pacificadora! Eu Dûr Sven, seu humilde servo na fé do Pai de Todos, Moradin, o Forjador de Almas, juro a ti meu serviço. Trarei a seu nome nada mais do que honra e glória, e a ti serei obediente até que meu corpo volte para as pedras das montanhas e minha alma se funda na Forja do Pai.
    - Ó Dûr Sven, mais leal dos servos - respondeu Skarri, suntuosamente - Eu o aceito sobre meu serviço, para que suas ações continuem sempre a trazer honra e glória ao nome do Pai de Todos, Moradin, o Forjador de Almas, e juro que nunca pedirei de você nada que o traga desonra. Eu juro proteger-te e guiar-te, ajudar-te e aconselhar-te, enquanto tua causa for fiel à do Pai e até que seu corpo volte para as pedras das montanhas e tua alma se funda na Forja do Pai.
   Um silêncio de suspense se passou entre os presentes. Ajoelhando-se de frente para Sven, Skarri continuou:
   - E, para que continues a servir ao Pai, dou-te este humilde presente - e tocou o martelo de Sven com a pontas dos dedos brilhantes.
   A arma tremulou, reconfigurando-se. Madeira e metal se tornaram dourados e brilhantes; uma grossa esmeralda brotou no pomo do cabo da arma. A cabeça do martelo mudou de forma, tornando mais quadrada, e inscrições magníficas adornaram sua superfície. Parecia uma verdadeira arma de um deus.
   - Oh, Senhora... - disse Sven.
   - Levanta-te mais uma vez, Dûr Sven - disse ela,e  ele obedeceu - Comemorastes tua vitória, fizestes o juramento, e agora, precisas descansar. Mereces cada bom fruto que recebestes hoje. E saibas que abençoo a capela que estás a construir, para que o mal nunca a toque.
   - É demais, Senhora... - disse Sven, a voz trêmula.
   - Não, meu querido, é apenas o que mereces - disse ela. Com um último sorriso, seu brilho começou a arrefecer, e sua forma deslizou lentamente de volta para a forja - E bênçãos sobre vós, amigos de Sven, que o ajudaram em seu caminho... o Pai olha por vós, sempre...
   Com um último sopro, a forja se apagou, deixando o maravilhado grupo no escuro.

O Mestre

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