segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Capítulo 2 - O Porto da Prata


Fonte: http://www.skyscrapercity.com

   O grupo se encarou, embaraçado demais para admitir ao soldado que um rapazote, ainda mal saído dos cueiros, era o responsável por guiar o barco. Thomas teve uma solução:
   - Nós somos uma tripulação democrática, meu bom homem. Somos todos responsáveis pela nau - anunciou, com um sorriso franco.
   - Filosofia digna de um fenardien, sem dúvida, senhor marinheiro. Mas alguém deve assinar a carta-contrato dos serviços portuários, - bateu com uma pena na prancheta que carregava debaixo do braço - e eu vou precisar conferir a sua carta-ingresso também, por favor. A que foi dada a vocês nas muralhas interiores.
   Darsh se adiantou, pegando a carta da mão de Drake.
   - Aqui, senhor... como é mesmo seu nome?
   - Capitão John da Guarda do Porto - respondeu o homem, distraído, enquanto lia a carta-ingresso sob a luz da lanterna a óleo que carregava - Aqui diz "Barco de Passeio". Isso está certo?
   - Sim, senhor.
   - Este é um barco de incursões kortlani, não é? Um dracar. Um barco de guerra. E vocês não me parecem estar apenas dando uma volta pela baía - o olhar de John se demorou sobre as armas presas no cinto de Aleena, o martelo na mão de Sven e as demais armas que descansavam no barco.
   O grupo parecia um tanto sem jeito. Drake pulou para a amurada, se juntando a Darsh.
   - Então, senhor... John, não é?
   - Capitão - corrigiu.
   - Capitão, sim. Perdão - acrescentou, com um sorriso largo - Veja, nós somos novos aqui. Quando nos perguntaram nossas intenções, bom, nós não somos comerciantes, e muito menos um exército. Achamos que "Passeio" era a opção mais viável.
    John encarou Drake por alguns instantes, com uma expressão indecifrável. Depois, soltou um longo suspiro.
   - Vocês são um grupo mercenário, certo?
   A Companhia se olhou, mais uma vez, desconcertados. Drake continuou:
   - Pode se dizer que sim.
   - Imaginei. Recebemos um tanto de vocês aqui. Tudo bem, - disse ele, rasgando a carta-ingresso - vou facilitar as coisas pra vocês. Companhias mercenárias se enquadram oficialmente como "Barcos de Comércio". Vocês são, afinal, prestadores de serviços - Concluiu ele, um tanto cético; o grupo respirou aliviado. No entanto, continuou - Agora vejam bem, vou dar um conselho pra vocês. Sugiro que escutem com atenção para não termos problemas no futuro.
   "Essa cidade é a maior da nação de Garmun, e talvez a maior de todo o norte. Isso se deve a uma coisa: ouro. Nessa cidade, todo aquele que pode prestar um serviço, vender ou comprar algo é bem-vindo. Ao contrário das vilas do interior, não nos importa de onde você vem, ou o que você é, contanto que possa contribuir para a grandeza de Morhstarr. Assim, da mesma forma que vocês serão tolerados, é esperado que vocês deixem suas contendas do lado de fora dos portões. Pra nós, da guarda, não nos interessa se vocês salvaram a Vila dos Pés-Rapados de um ogro malvado, ou se forjaram a Lâmina Branca com a luz das estrelas, ou se são filhos do grande Conde de Lugar-Nenhum. Aqui, se vocês saírem da linha, é uma passagem só de entrada para as masmorras de Sidar. Comportem-se, divirtam-se e façam bom proveito de sua viagem, e todos nós nos daremos muito bem." disse o capitão, olhando cada um deles demoradamente. "Por fim, o Duque recebe peticionários todas as manhãs, na fortaleza. O porte de armas é proibido na cidade, a não ser por permissão expressa do Duque ou pelos membros da Guarda. Deixem suas armas no barco. E nada de "coisas estranhas" - luzes, fogo, relâmpagos e por aí vai. Isso é pior do que dar uma machadada em alguém, aos olhos do povo." engoliu, retomando o fôlego. "Se quiserem beber algo, temos duas tavernas bem próximas daqui: O Leviatã é aquela barulhenta ali, bem popular entre os marinheiros. O Bar do Chifres é mais a leste daqui, e é um lugar mais... reservado. Precisando de algo, podem falar com os guardas."
   Com o fim do monólogo do capitão, o grupo acabou de se preparar para aportar. Pagaram a John uma quantia de quinze Coroas de ouro como taxa de embarque ("Que absurdo!", resmungara o anão), e mais cinco em adianto pelos próximos cinco dias.  Trocaram as armaduras por roupas mais confortáveis - Tom ainda vestia apenas um trapo roto e sujo - e decidiram ir para a taverna d'O Leviatã, que tocava música animada e cheirava esplendidamente a peixe, carne de porco e cerveja. Darsh, entretanto, decidiu ficar no barco.
   - Não estou com humor pra isso. E aquela sopa que vocês fizeram ainda está me incomodando. - colocou a mão na barriga - Mandem o moleque me trazer um pouco de comida e cerveja quando der. Tomem aqui essas moedas.
   - Como quiser, senhor Darsh - disse Thomas, pegando as Coroas de prata. Se virou para o seu mais novo bogun e disse -  Faça companhia a Darsh e guarde o barco. Se algo acontecer, venha direto para mim, entendeu?
   O serzinho soltou um chiado estranho (que parecia curiosamente um grito de dor muito agudo), mas pareceu entender, pois se sentou sob as pernas traseiras e permaneceu imóvel, encarando o nada.

Fonte: chroniclesofthedas.com

   O porto, fracamente iluminado por lamparinas a óleo presas em pequenos postes de madeira, estava ativo mesmo naquela hora. Marinheiros musculosos carregavam e descarregavam barcos, seus superiores supervisionando o serviço; guardas trocavam gracejos com as prostitutas do porto; boêmios cantavam, bebiam e irrigavam o solo de terra batida calçado por pedras brancas. A diversidade de raças era de impressionar: além de humanos de todas as cores, sotaques e nações, via-se também muitos anões, alguns elfos e meio-elfos, e raramente um híbrido orc como Darsh ou algum grupo de gnomos animados.
   O Leviatã, por sua vez, era uma construção imponente. Um antigo armazém do porto, fora transformado em taverna com a construção de um mezanino que dividia a alta construção de madeira (quase nove metros de altura) em dois andares. Era recuada em relação à rua, dando espaço para que os clientes paquerassem, brigassem ou fizessem coisas ainda menos dignas no seu exterior. Encimando a pesada porta dupla de madeira, um gigantesco crânio de baleia fora amarrado à parede frontal do estabelecimento com um grosso cordame. A taverna estava abarrotada de gente.
   A atmosfera interior era típica de estabelecimentos dessa ordem. Três músicos tocavam uma rabeca, um tambor e uma flauta alegre e desafinadamente, enquanto várias pessoas dançavam numa pista improvisada no primeiro andar. O som da música se misturava com o cheiro de comida, bebida, urina e fumo, este último responsável pela atmosfera esfumaçada. Um balcão abraçava três paredes da taverna, onde a equipe da casa atendia os clientes.
   Ao entrar, o grupo tomou um susto com um dos clientes que ia saindo - um medonho hobgoblin com dois metros de altura. Aleena levou a mão instintivamente à espada, que não estava lá, mas imediatamente percebeu o erro: não era Ishakût, o vilanesco capitão hobgoblin que enfrentara uma semana atrás. Aquele lá estava estava bem morto. O hobgoblin apenas rosnou, mostrando as presas e continuou seu caminho.
   A Companhia escolheu um bom lugar no balcão, próximo da entrada. Drake pediu seu habitual predileto, uma torta recheada de bacalhau, enquanto Aleena perguntou:
   - Taverneiro! O que tem de mais forte?
   O homem, calvo e portando suíssas impressionantes, deu um sorrisão desdentado e disse:
   - Destilado de batatas de Nahros, senhorita! Um veneno digno, se posso dizer! Posso servi-la?
   - Um copo cheio, por favor.
   - Dois! - anunciou Thomas, dando tapinhas na barriga - Eu não bebo propriamente há trinta anos! Essa vai ser uma noite memorável, ah, se vai!
   - E para o senhor, mestre anão?
   - Suco de frutas.
   O grupo trocou olhares assombrados, e depois encararam Sven, interrogativos.
   - O que foi? Não estou nesse clima de festa de vocês. Me deixem em paz, seus panacas.
   Apesar da macambuzisse de Sven, a noite fora boa. Tom ficou bêbado como um cão, entornando a bebida estrangeira numa rapidez espantosa. Aleena bebeu também, e suas bochechas cobertas de sardas adquiriram uma cor semelhante à de seus cabelos flamejantes. Drake batizou o suco de Sven várias vezes, furtivamente, e até que seu humor foi melhorando; entretanto, ao perceber o embuste, saiu da taverna vermelho e xingando alto. O ladino pôs-se então a dançar e flertar com as moças locais, sendo sumariamente rejeitado por cada uma ("Embora," repararam seus companheiros "até que ele dança bem para um camarada tão estranho.")
   Entre um copo e outro, Thomas abordou Oc, que voltava do barco (tinha ido levar comida e bebida ao feiticeiro). Trocando os pés e as palavras, abraçou o menino, falando muito próximo do rosto dele e o cobrindo de perdigotos:
   - Olha xó, Octe... ta... Ocavia... olha xó, garoto. Quanxos anos voxê tem, *hic* hoxe?
   Tentando se esquivar do beberrão, o rapaz respondeu:
   - Não sei, mestre Thomas... parei de contar quando entrei para a marinha. Uns doze ou treze invernos, eu diria...
   - Bom... isso é bom... - Thomas gastou um longo intervalo olhando pra cima, perdido em seus pensamentos. Subitamente, voltou - Xabe, garoto, eu fiquei muito tempo... muito... xabe, muito tempo. E eu não tife um filho.
   - Eu entendo, mestre Th-
   - Famos parar - cortou o velho - com esse papo de mestre. Voxê agora me chama de 'Thomas'. Ou só 'Tom'. Ou *hic* de 'Pai'.  Entendeu?
   - Sim, mes... Thomas. Sim, Thomas - o garoto, como sempre, parecia um tanto constrangido.
   - ÓTIMO. Agora, como meu primeiro ato de *hic* pai, eu vou te disciplinar - e , dizendo isso,  pegou um trapo velho que estava usando como pano e estapeou o rapaz no topo da cabeça do rapazote com ele - Voxê está se xentindo... *hic* dixipli... hã... dixiplado?
   - Er... sim, mes... Thomas.
   - Ótimo. Agora, como meu primeiro ato como pai, vou te ensinar como amar uma... *hic* uma mulher. Mas primeiro - e pegou a garrafa de bebida, à sua frente - Tome. Voxê vai prexisar.
   O rapaz tomou uma boa golada da bebida, e fez uma careta.
   - Ótimo. Agora vamos escolher uma candidata... - olhou de esguelha para Aleena, que ganhava na queda de braço de um enorme marinheiro com pele cor de ébano, sendo ovacionada pelos lobos-do-mar ao redor - ...não, ela não. Isso é estáxio avançado. Tem que ser algo como... ela - e apontou para uma senhorita que bebia a alguns metros dali,vestindo longas botas, calças e um justilho de couro escuro, cabelos cor de trigo cortado nos ombros.
   - Mas... o que eu faço? - Oc corava furiosamente.
   - Ouça seu pai, garoto. Chegue pra ela e... fale coisas bonitas. Mulheres gostam. Leve essa bebida, - e o entregou a garrafa de destilada, já pela metade - vai ajudar *hic* também. Se voxê tiver dúvida, pergunte ao seu caranguejo, ele sabe das coisas.
   - Mas eu...
   - VAI!
   Cambaleando, o pobre rapaz avançou na direção da moça. Thomas o observou por um tempo, enquanto o rapaz conversava com ela - seu rosto da cor de um tomate - e deu uma gostosa gargalhada quando viu a moça rindo de forma meiga de algo que ele falara, enquanto ambos sorviam um gole da bebida. Virou-se para um marinheiro gordão, ao seu lado e anunciou:
   - Viu xó, meu chapa? É axim que se cria um filho! Rá, rá!
   O marinheiro olhou pra Tom, mal-humorado, e respondeu:
   - Cai fora, velhote.
   A expressão de Thomas mudou da água para o vinho. Com uma carranca, levantou-se da cadeira (tropeçando) e gritou:
   - VOXÊ! VOXÊ XÁ VIU... *HIC*... UM HIPO... um impo... UM INVOGRIFO?
   O marinheiro e seus companheiros riram.
   - Cala a boca, seu saco de banha. Volta pra casa.
   Enfurecido, Thomas arremessou o copo de madeira na cara do gordo - ou, pelo menos, ele tentou. O copo quicou em um barril atrás do balcão e caiu no chão, mas fora o suficiente: o gordo marinheiro e três homens mal-encarados se levantaram, estalando as juntas. Thomas, por sua vez, esticou os braços e gritou!
   - PREPARE-SE! SHABASTHAN, TRAGA O INVO.. GRIFO!
   E absolutamente nada aconteceu.
   A última coisa que Tom ouviu foi o taverneiro gritando "Briga aqui dentro, não!"; a última coisa que viu foi as juntas dos dedos do marinheiro gordo em sua cara. E aí, tudo ficou escuro.

Por hoje é só, aventureiros! Fiquem ligados para saber o desfecho da desventura de Thomas!
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Encarecidamente,
O Mestre

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