quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Capítulo 3 - A Fortaleza de Sidar

   Com um jato de água fria, Thomas acordou, tossindo e cuspindo. Se viu no chão d´O Leviatã; uma jovem rechonchuda de cabelos cor-de-mel o encarava, com um balde vazio nas mãos.
   - Desculpe, senhor, - gaguejou a menina - mas estamos fechando.
   Tom se sentou. Tinha um gosto metálico horrível na boca, e sentia um cheiro asqueroso. Piscou várias vezes e lavou os olhos com a água que escorria de sua cabeça. Por fim, levantou-se, gemendo horrivelmente no processo. A menina se prontificou para ajudar:
   - Aqui, vovô, se apoie em mim...
   - Por que todo mundo me chama de "velho" ou "vovô"?  Sombras e espectros, eu tenho só cinquenta anos!
   - Desculpe, senhor, não quis insultá-lo...
   - Tudo bem. Ai! - apalpou o nariz, e se arrependeu; a ponte doía muito ao toque - Está quebrado, não está?
   A menina fez que sim com a cabeça. Pela sua expressão, Tom imaginou que não estava nada bonito.
   - Tudo bem, menina... quanto eu devo o seu patrão?
   - Nada, senhor - respondeu o taverneiro desdentado, aparecendo com olhos fundos e um sorriso cansado - Sua amiga ruiva pagou sua conta. Deu um belo espetáculo, aquela lá.
   - O que... o que aconteceu? Eu me lembro de tão pouco... - sua cabeça doía; mais uma fonte de dor para sua coleção.
   - Bom... - o taverneiro coçou o queixo - deixe-me ver... depois que aqueles marinheiros de Nahros bateram em você, ela apareceu do nada e acabou com eles. Quebrou um braço e vários dentes, ela. É difícil ver uma mulher que luta daquele jeito. Espantoso.
   Tom engoliu em seco. A cena era perfeitamente plausível em sua cabeça.
   - Então todo mundo começou a ovacioná-la e comprar cervejas pra ela... e ela disse que quem tocasse em você ia perder as duas mãos e o... enfim, foi uma bela ameaça. Ninguém tocou em você a noite toda, mas ela esqueceu de te levar. Estava bem bêbada. Todos estão sempre, aqui. Mas agora tenho que fechar, então... por gentileza, já que estamos quites, eu tenho que limpar o local.
   - Pois não... mil perdões pelo incidente, senhor taverneiro.
   - Eu tenho uma taverna de marinheiros no maior porto do norte. - respondeu o homem, sorrindo - Qualquer dia em que ninguém se espanca é um dia estranho.
   Thomas agradeceu mais uma vez e saiu pela porta de entrada. A luz do sol nascente feriu seus olhos, e ele xingou em fenardien enquanto protegia o rosto. Tentou usar sua magia espiritual para consertar o estrago inchado que era seu nariz, mas falhou: talvez por ainda estar meio bêbado, ou talvez pela falta da costumeira comunhão espiritual que fazia todas as manhãs.
   O velho andou a esmo, tentando lembrar onde tinham aportado, mas o Porto da Prata era outro lugar de dia. Um formigueiro humano, a corrente de pessoas empurrava Tom em frente: pessoas carregando pesadas caixas e barris, desembarcando e embarcando, carregando carrinhos com ostras à venda... e achar o barco era ainda mais impossível, pois o porto parecia ter mais de mil barcos. Galeras imperiais, cascos-negros garmuni, galeões fenardien, barcaças, balsas... era simplesmente coisa demais.
   Após algum tempo de busca infrutífera, Thomas parou pra descansar em frente a uma barbearia. Tentava traçar um plano para se reunir com seus companheiros, quando ouviu uma vozinha fina de criança falar, na língua de Fenard:
   - Ugh! Olhe, mamãe, como fede! E como é feio!
   - Não aponte, menino - disse a mãe, uma senhora fenardien que usava um xale e um lenço sobre a cabeça - É apenas um mendigo sujo.

Fonte: medicineisart.blogspot.com


   Ultrajado, Tom pensou em responder - mas aí viu seu reflexo parcial na vidraça da janela da barbearia. Seu nariz era um pimentão esmagado; o bigode e os fiapos de cabelo estavam sujos e desorganizados, e ele ainda vestia apenas uma capa muito velha e completamente imunda - que, além de sua valiosa camisa de cota de malha de mitral, era tudo que separava seu corpo flácido do mundo. Decidiu, então, entrar na barbearia pra se tornar um pouco mais apresentável.
   Foi recebido por um homem de meia idade e sua esposa: era o primeiro cliente do dia. Ambos o olharam com descarada repulsa, enquanto ele caçava o dinheiro que tinha em sua bolsinha de couro presa na corda que usava à guisa de cinto.
   - Gostaria de cortar o cabelo e aparar a barba. Um banho gelado, também para acordar. De água do mar, se for possível. Ah, e também estou precisando de umas roupas, onde consigo?
   - Se posso perguntar, senhor - disse o barbeiro, franzindo o nariz - como pretende pagar?
   Grunhindo, Thomas jogou uma coroa de ouro, três de prata e vários trocados de cobre para o homem. A expressão nos rostos do casal mudou pra completamente servil em questão de segundos.
   - Sente-se, sente-se, mestre... mulher, vá encher os baldes com água do mar! Aqui, por favor...
   Um bom tempo depois, Tom saiu da barbearia como um novo homem. Cabelo raspado na navalha, barba mantida rente à pele, bigode farto devidamente desenhado; o barbeiro mandara chamar um alfaiate três lojas dali, e o xamã comprara um conjunto de resistentes vestes de viajante: uma calça de couro macio, um par de botas de qualidade, uma camisa de algodão e um longo gibão de couro sem mangas, além de um capuz de couro leve. Tudo isso amarrado com um belo cinto preto afivelado.
   Saindo da loja com o espírito renovado, Tom procurou o barco pelo porto, acompanhando a linha dos cais. Antes que achasse o barco, no entanto, o que encontrou foi...
   - Octavius? O que você está fazendo aí?
   Amarrado pelos pulsos com uma corda grossa, o rapaz fora atado a um poste de madeira do cais. Estava quase nu, a não ser pela calça de pano remendada.
   - Mes... Thomas? Oh, Thomas, por favor, me solte!
   O velho xamã desamarrou o rapaz, sob os risos de vários marinheiros ali perto.
   - O que você está fazendo aqui? Pelas barbas de Obbadjah, que dia maluco é esse?
   - Foi... aquela moça, Thomas... na taverna...
   As lembranças inundaram a cabeça de Thomas - a bela loira, vestida para cavalgar.
   - Ela fez isso com você? O que você fez com ela?
   - N-nada, eu... fiz o que você mandou, Mestre, eu...
   - Você não... - Tom aproximou-se do rapaz, falando baixinho - ...você não tentou... entrar no barco pela rampa de carga, tentou?
   - Eu... o que isso quer dizer? De qualquer forma, nós nem chegamos a fazer nada, eu... eu estava um pouco bêbado, e ela falou que gostava do meu chapéu... ah, por Pelor, meu chapéu! A mestra Aleena vai me matar!
   Tom retirou um lenço novo em folha do bolso e estapeou o rapazola na cabeça.
   - Menino tonto. Vamos, vou achar seu chapéu pra você. Essa maldita... deixe-a comigo. Mas primeiro, quero saber onde está o barco, não lembro onde aportamos...
   - Eu me lembro, Thomas. Não estamos longe. Vamos - insistiu. As pessoas estavam olhando para ele, alguns rindo maldosamente de seu estado.
   Seguiram andando pelo cais, contornando um grande galeão, e acharam o dracar da companhia. Pularam pra dentro, apenas para encontrar o bogun de Tom - parado na exata mesma posição da noite anterior, ainda com um olhar morto -  e Darsh, que, aparentemente, dormia abrigado sob a lona esticada entre as amuradas.
   - Bom trabalho, rapaz - disse Tom, elogiando o bogun, que soltou um gritinho agoniado. Encaminhou-se para o fundo do barco - Ei, senhor Darsh, acorde. O sol já vai alto.
   O jovem feiticeiro roncou e virou-se.
   - Darsh, ei. Acorde. Darsh! - o meio-orc o ignorava solenemente. Reparou, então, em Pott, a coruja de estimação de Darsh, que dormia debaixo de uma asa - Ei, corujinha, está acordada? Ei, Pott?
   Mas quando Tom cutucou a coruja, percebeu que tinha cometido um erro. A coruja acordou a toda, guinchando e voando pelo espaço confinado, numa nuvem de penas. A algazarra foi tanta que Darsh, acordou, gritando:
   - Ataque! Estamos sob ataque!
   Pott saiu voando, histérica, enquanto Thomas acalmava Darsh.
   - Calma, senhor Darsh, sou apenas eu.
   - Cacetada, velhote! O que você fez com a Pott?
   - Só a acordei... eu queria falar contigo, mas você se recusava a despertar...
   - Ah, ótimo. Agora vou ter que aguentar ela reclamando a manhã toda - Thomas sabia que Darsh possuía um vínculo com a coruja, da mesma forma que ele e Shabasthan. De acordo com o feiticeiro, eles conseguiam conversar através de suas mentes.
   - Desculpe-me, sinceramente. - disse Tom, enquanto Darsh fazia uma carranca e saía de debaixo das cobertas - Você sabe onde foram todos?
   - Não! Eu não sei! Sabe porquê? Porque eu estava dormindo! Fogo e ruína, Thomas!
   Thomas se desculpou e tentou fazer com Darsh se juntasse a ele, mas ele percebeu que Pott não era a única que acordara de mau-humor. O feiticeiro se retirara para a proa do barco e se sentara em sua habitual pose de meditação, fechando os olhos. Thomas suspirou. Pela bagunça no barco, parecia que pelo menos mais alguém passara a noite ali, mas... para onde eles teriam ido?

Fonte: www.imagensfotos.com.br
  
   Do outro lado da cidade, Sven, Aleena e Drake cruzavam um enorme arco de pedra branca, porta de entrada da Fortaleza de Sidar.
   O Duque recebia os cidadãos que tinham algo a reclamar, clamar ou requisitar todas as manhãs do ano - algo que denotava um cuidado impressionante com seus governados. Após andar pelas primeiras horas do dia, atravessando o Distrito da Prata (onde o comércio da cidade fervilhava ao máximo) e o Distrito Baixo (onde moravam a maioria dos cidadãos que não eram comerciantes ou pescadores), o trio caminhou por cima dos Arcos de Daven, uma ponte de pedra branca que cruzava o gargalo do delta do Rio Prateado; os arcos eram tão impressionantes que permitiam que grandes barcos atravessassem o rio abaixo dos pedestres. Chegaram assim ao distrito ducal, onde se localizavam as mansões e palacetes dos nobres e mais ricos mercadores; essa região era patrulhada constantemente pela guarda da cidade e seguranças contratados. Dali, era possível ver a Mata Velha, onde o duque e os nobres podiam caçar de dentro da segurança das muralhas.
   Os três aventureiros conseguiram chegar no pátio interno da fortaleza sem que ninguém percebesse que o embrulho que Aleena levava, debaixo dos braços. Era a Espada Leonina, a relíquia perdida que a Companhia recuperara uma semana atrás e que pertencia à família Daven. No entanto, sua sorte chegara ao fim quando foram abordados por dois guardas, responsáveis por admitir os peticionários no castelo.
   - O que é isso que carregam? Passem pra cá - disse o guarda mais velho, vestido numa pesada placa de peito, um capacete de ferro em cuia e carregando uma pesada alabarda.
   Antes que o homem tomasse o embrulho, Aleena abriu o fardo e mostrou a arma para a dupla.
   - Reconhecem essa faca aqui?
   Não havia erro. Quadros pintados por todo o forte mostravam o pai e o avô do Duque Daven portando a magnífica espada, toda da cor do ouro e decorada na guarda e no pomo com cabeças de leão. Os guardas ficaram boquiabertos.
   - Vocês... como...
   - Viemos trazer esse presentinho para o Duque. - disse Sven - Então, por favor, deem passagem.
   Os guardas se olharam, confusos. Aquele tipo de situação era totalmente fora do protocolo que estavam acostumados a seguir.
   - Espere um momento - disse o guarda mais velho, apertando os olhos - Vocês têm licença para portar armas?
   - Mas era só o que me faltava - disse Sven, irritado.
   - Nós viemos de muito longe pra trazer essa relíquia ao Duque, guarda - disse Aleena, com a expressão dura - Você realmente quer nos segurar aqui? Diga-me então seu nome, para que eu possa informar o Duque mais tarde quem foi o infeliz que nos fez esperar à porta como vendedores de botões, portando a espada mágica de sua família.
   Sven e Drake se olharam furtivamente. Aleena não era muito faladeira, e muito menos fazia o tipo diplomático. Os guardas, por sua vez, pareciam ainda mais indecisos. Ficaram em silêncio por alguns segundos, até o o guarda mais novo finalmente falar.
   - Bom, acho que o Duque não ficará incomodado com uma pequena exceção, dada a... especificidade da situação. Podem passar.
   O guarda velho fez uma careta para o colega, mas não ousou confrontar o grupo. Abriram passagem, e a equipe avançou na direção das grandes portas que se abriam para o interior do forte.
   - Ora, ora - disse Drake, com um sorrisinho contido - Aleena, você me surpreende mais cada dia que passa.
   - Como assim?
   - O guarda moleque - disse Sven, sorrindo também - Não tirou os olhos de você um minuto sequer.
   - Calem a boca, vocês dois.
   Andaram pelo saguão de entrada, impressionados. Perfeitamente quadrado, suas altas colunas e paredes de pedra eram decoradas com tapeçarias, armaduras e flâmulas com o tritão azul-e-prata da família Daven.Seguiram o caminho sinalizado pelos guardas e adentraram um corredor lateral, ladeado por mais umas tantas armaduras em pose de guarda, e chegaram a uma antessala onde os peticionários do dia faziam fila para ter com o Duque.
   - Olha só quantos - exasperou-se Drake - Nós nunca vamos vê-lo antes do meio-dia.
   Aleena adiantou-se novamente, e foi ter com um dos guardas que supervisionava a fila.
   - Olha só, - disse a moça, impaciente - nós estamos trazendo aqui algo de grande importância para o Duque. Não podemos ficar esperando nessa fila absurda. Deixe-nos entrar.
   O guarda lançou a ela um olhar cansado.
   - Sei, um presente. Como os trinta e tantos que recebemos todos os dias. Aquele senhor ali - apontou para um velhote magrelo com ar humilde - chegou quando ainda estava escuro, e vai presentear o Duque com uma "lagosta encantada" que diz ter pescado.
   O velho carregava, com muito cuidado, uma grande lagosta de cor azul vibrante.
   - Não estamos de brincadeira! Precisamos ver o D...
   - Então esperem na fila. Como todos os outros. - cortou o guarda - Ou então podem voltar amanhã - acrescentou, apertando o cabo da alabarda com força.
   Aleena corou, furiosa. Sven, entretanto, cochichou para Drake:
   - Parece que o charme feminino não funciona sempre. Vamos tentar um charme de verdade, então - piscou um olho.
   Sven tocou o peito com um punho fechado, enquanto murmurou uma prece para seu patrono, Moradin. Suplicou que o deus o banhasse em glória e esplendor, para que que nenhum homem atravancasse seu progresso. Sentiu o peito encher com o fervor ao seu deus, e então falou, com sua voz trovejante:
   - Senhor guarda! Caros cidadãos! - e o ambiente pareceu tremer perante a grandeza de seu discurso - Muitos aguardam uma audiência com o Duque, eu sei. No entanto, existem prioridades a serem atendidas. Nós somos a Companhia Inconsequente e trazemos ao Duque uma relíquia de grande poder, herança de seu avô! Duque Daven não deve esperar nem mais um minuto para receber o que lhe é de direito. Então, um passo ao lado, pois nós agora iremos vê-lo.
   Impressionantemente, os plebeus e mercadores se afastaram para dar passagem ao trio, de forma quase involuntária. Uma jovem tinha o olho marejado de lágrimas. O próprio guarda, tão seguro de si há poucos segundos atrás, engoliu em seco e tentou balbuciar um protesto, mas Sven passou sumariamente ao seu lado e seguiu para a sala de audiências, com Aleena e Drake em sua cola.
   - Como você fez isso? - cochichou Drake, impressionado.
   - Hah, rapaz. Nada é impossível para os escolhidos de Moradin. Agora é você quem deve falar, no entanto. Está pronto?
   - Estou. - Drake engoliu em seco, e o grupo adentrou na sala.


E agora, como se dará esse encontro? Que tipo de pessoa será o Duque Daven?
Fique ligado para descobrir!

O Mestre

Nenhum comentário:

Postar um comentário