Naquela noite, Aleena dormiu muito mal.
Seu sono foi tomado por sonhos desconexos e incompletos, muitos deles recortes de sua infância. Em vários deles ela se lembrava do dia mais negro de sua juventude: seu pai retornava dos saques, embriagado e furioso, e dizia que sua mãe estava morta e que ela devia ir embora para Dartistaed. Ela chorava e esperneava, e o bebê que seu pai trouxera fazia coro com ela; mas o homem gritava ainda mais alto, ordenando que juntasse seus pertences. Aleena acordou várias vezes durante a madrugada, suando frio.
Fonte: sandyquill.com
O grupo foi acordado com o cheiro delicioso de pão quente. Darsh, Drake e Tom dividiam um quarto andar superior da casa; ao seu lado, Aleena ganhara um pequeno quarto individual. Sven dormia no porão, num compartimento ao lado do de seu amigo Thudar.
O grupo tomou seu desjejum na companhia do anão paladino. Pão molhado no mel, ovos, linguiças e cerveja foram servidos à vontade.
- Vamos ficar gordos e mal acostumados assim! - riu Darsh, estalando os lábios - E então, companheiros, o que temos para hoje?
- Temos que arrumar alguém para vendermos toda a tralha que acumulamos nas viagens - disse Sven, bocejando.
- A "tralha" - respondeu Darsh - são armas encantadas que valem, na pior das hipóteses, várias centenas de Coroas de Ouro. Não vamos conseguir vendê-las a um fabricante de ferraduras. Será que o Duque tem um mago da corte? Isso é comum em Nahros.
- Ele tem uma conselheiro especialista em assuntos arcanos, sim, - disse Thudar, com a boca cheia de pão - mas existe uma alternativa melhor. Temos um mercador especialista em itens encantados, aqui na cidade. Ele tem ma loja fixa na Rua Thall, no Distrito da Prata.
- Que sorte! Vamos lá, então!
- Esperem. - cortou Sven - Prometi a Thudar que iria conduzir o Rito das Chamas Novas, e pretendo fazê-lo agora pela manhã.
- Rito do quê? - interessou-se Tom, lambendo os dedos lambuzados de mel.
- Chamas Novas. - repetiu Sven - É uma bênção à forja da casa de um fiel de Moradin. Todos devem assistir.
- Por quê? O que eu tenho a ver com a sua fé? - disse Drake.
- De fato, anão. Boa sorte no ritual, mas nós temos que...
- Todos assistirão! - disse Sven, vermelho - Estamos sendo hospedados pela boa vontade de Thudar, mostrem um pouco de gratidão e respeito com a fé do seu anfitrião!
O grupo resmungou um pouco, mas concordaram. Acabaram o desjejum e se encaminharam, arrastando os pés, para a forja no quintal da casa.
Sven gastou uma hora inteira recitando salmos no idioma anão (Drake encostou-se em uma parede da casa e pôs-se a dormir). Rogou a Moradin que abençoasse aquela forja e todos os trabalhos que eram ali realizados, e pediu que protegesse Thudar do mal e da má-sorte. Fez várias marcas na forja com as cinzas da fornalha, acendeu a forja e, rapidamente, forjou um tosco símbolo de ferro - algo como uma ferradura circular.
- Um kharan - explicou ele - para garantir que a bênção do Grande Pai dure por muito tempo.
- Obrigado, irmão. - sorriu Thudar - Minha alma está mais leve. Agradeço. - e pendurou o kharan na parede da forjaria.
O grupo separou as mercadorias a serem vendidas e se preparou para sair em direção ao Distrito da Prata. Aleena, entretanto, ficou parada, parecendo ainda mais rabugenta que de costume (olheiras profundas emolduravam seus olhos).
- Que foi, senhorita Aleena? - perguntou Darsh - Não se sente bem?
- Na verdade, assumi um compromisso em... ajudar a senhora Xhu Sie, a dona da casa. Não sei se posso sair agora...
- Pode - uma voz se fez ouvir, descendo as escadas - Hoje é o último dia desta fase da Lua. É um dia de descanso. Faremos o que temos que fazer durante a noite, então vá.
O grupo fez uma ligeira mesura, cumprimentando a anfitriã. Aleena concordou com um aceno educado de cabeça. A oriental usava sua habitual máscara e um longo robe cor-de-trigo. Dispensados, saíram pela porta da frente.
As ruas estreitas de Morhstarr criavam um vento gelado e cortante que pegou a Companhia desprevenida. Tremendo e se escondendo atrás das roupas, o grupo andou pela cidade seguindo as direções dadas por Thudar: subiram as ruas do Distrito Baixo até chegarem ao Mercado Grande, no coração do Distrito da Prata, e então subiram uma viela que dava diretamente na íngreme e apertada Rua Thall.
- Aposto meu cajado que é aquela loja ali - disse Darsh, apontando para uma construção estreita de quase quatro andares de altura, com uma gigantesca porta dupla de madeira na fachada.
Se aproximaram da construção e pararam para admirar a porta. Esta tinha a altura de dois homens, um nos ombros do outro, e era recoberta em intervalos regulares por pequenas placas de bronze recobertas com dizeres em diversas línguas - Ocidental, Kortlani, Garmuni, Fannardien, Nahrosi, Pellarion, Anão, Élfico e muitas, muitas outras. Darsh se surpreendeu de ver uma placa mais baixa, perto ao chão, escrita nas runas garranchosas e afiadas usadas pelos orcs. Todas as placas continham os exatos mesmos dizeres, traduzidos para todos os idiomas: "Antiguidades e Ferramentas Arcanas de Boobeedabeetz. Entre sem bater."
- "Entre sem bater." - leu Sven, em voz alta - Vamos lá, então.
Girou uma das grandes maçanetas de bronze, revelando o interior da loja. Um a um, eles foram entrando, com exceção de Drake, que ficou pra fora. Ele estivera encarando uma das placas mais altas da porta, recoberta por uma série de símbolos intrincados e complexos - mais pareciam desenhos. Ele nunca os vira na vida, e, entretanto, conseguia lê-los perfeitamente. De certa forma, ele simplesmente sabia o que significavam.
Aleena colocou a cabeça pra fora, e chamou-o:
- Ei, garmuni. Não vai entrar?
Como que despertando de um transe, Drake sacudiu os ombros e seguiu a guerreira pra dentro da loja. A porta bateu às suas costas, e um pequeno sino tocou em algum lugar. Quando olhou para o ambiente, não conseguiu impedir de soltar uma interjeição de assombro.
Nuvens de poeira eram preguiçosamente iluminadas pelos feixes de luz matinal que entravam, tímidos, pelas vidraças das janelas. O interior da loja era tão alto quanto a porta de entrada, e suas paredes de madeira escura eram completamente recobertas por itens de toda sorte. Num mostruário perto do balcão, dezenas de pequenas varas de madeira, cada qual muito diferente da outra, estavam cuidadosamente organizadas; as prateleiras altas do fundo da loja mostravam armaduras ornamentadas montadas em manequins, ao lado de uma espécie de lâmpada com um grande cristal ametista em seu interior.. Um raque à esquerda comportava várias espadas, lanças, maças e machados, alguns cravejados de joias e outros parecendo gastos e enferrujados. Uma grande redoma de vidro comportava um grande barril, de aparência absolutamente mundana. Por todo lado, as paredes eram recobertas de gavetas de tamanho variável. Mais assombroso que tudo, entretanto, era a noção que a loja era muito mais ampla por dentro do que sua arquitetura estreita sugerira por fora.
Em um instante, o grupo foi acordado de sua contemplação quando uma figura surgiu de trás do balcão e anunciou, com uma voz grave e sedosa:
- Bem-vindos à Antiguidades e Ferramentas Arcanas. Eu sou Boobeedabeetz.
Boobeedabeetz era humanoide em sua forma, mas certamente não era humano. A pele tinha um tom azulado claro que permitia ver as veias escuras por baixo. Seu rosto era anormalmente comprido, com um queixo de tijolo; seu sorriso gentil mostrava uma gengiva saliente e dentinhos pontudos. Os olhos eram vermelhos como o fogo, e uma rede prendia o cabelo numa forma que lembrava dois grandes chifres. Usava um longo e pesado manto negro decorado com padrões discretos, desenhados também em linha negra. As mãos eram compridas e seus dedos possuíam uma articulação a mais; ele parecia estar sempre gesticulando com elas. Para coroar sua figura, Boobeedabeetz tinha pouco mais de três metros de altura.
Embasbacado, o grupo o cumprimentou com alguns murmúrios. O mercador manteve seu sorriso gentil e perguntou, num tom educado:
- Vocês buscam a venda ou compra de itens? Ou talvez querem alugar um serviço?
Aleena se adiantou:
- Venda, senhor Boobee... senhor mercador - disse ela, depositando o embrulho que continha duas lâminas em cima do balcão.
- Embora - disse Drake, olhando para os arredores com os olhos negros brilhando de ganância - não devemos descartar a compra, é claro.
Com movimentos sutis e calculados, o grande mercador abriu o embrulho entregue por Aleena e pousou seu conteúdo em cima do balcão: duas lâminas de qualidade excepcional, adquiridas pelo grupo em suas aventuras prévias. Uma delas era uma lâmina curta, forjada pelo povo élfico, encantada para causar ferimentos mortais quando atingisse o inimigo ancestral daquele povo, a raça dos orcs; a outra era uma longa cimitarra recoberta por runas arcanas, forjada com um feitiço simples que lhe garantia velocidade, durabilidade e fio superiores a uma lâmina comum.
Boobeedabeetz mexeu em um bolso no interior de seu manto e de lá retirou um grande monóculo de cristal e ouro, que encaixou em seu olho esquerdo. Automaticamente, as lentes do monóculo giraram sobre si mesmas, ajustando o foco para analisarem as lâminas. Boobeedabeetz segurou as espadas delicadamente nas pontas dos dedos longos, enquanto as estudava atentamente. Depois de um longo silêncio, sorriu para a Companhia e anunciou:
- Trabalho de boa qualidade, ambas. Encantos simples, mas eficazes. Ficarei feliz em comprá-las por dez centenas de Coroas de Ouro cada. Antes de descontar a taxa correspondente à décima primeira parte, aplicada à qualquer transação envolvendo materiais encantados, claro.
- Onze por cento? - protestou Darsh - Que absurdo é esse?
- E mil peças é pouco, senhor, muito pouco. - disse Drake - Julgo que elas valem pelo menos quinze centenas cada, e nada menos.
O mercador não desmanchou o sorriso.
- A taxa de onze por cento é aplicada sobre ordem do Duque Daven, administrador desta cidade, e nada posso fazer quanto a ela. Agora, quanto aos preços... se vamos negociar, sugiro que façamo-lo da maneira mais civilizada, concordam? Vou trazer um bule de chá e alguma coisa para beliscarmos. Venham, tenho uma mesa e algumas cadeiras aqui, creio que todos ficaremos melhor acomodados.
O grupo se entreolhou e deram de ombros. Seguiram por uma passagem perpendicular ao balcão e se acomodaram numa mesa alta. Boobeedabeetz se retirou para os fundos da loja, e retornou depois de uns instantes com um bule fumegante, um jogo de xícaras e uma travessa de madeira com uma seleção de frutos vistosos, mas desconhecidos.
- Figos - sorriu ele, antes que perguntassem. Sentou-se na ponta da mesa, numa grande almofada que o deixava quase no mesmo nível que os demais. Remexeu novamente nos bolsos e retirou um pequeno livro de couro negro, que colocou na mesa, na frente dos companheiros - Este é um catálogo dos itens e serviços por mim comercializados. Pensei que vocês poderiam se interessar em adquirir alguma mercadoria como parte do pagamento.
O grupo bebeu o chá e provou os figos enquanto se espremiam juntos para ler o catálogo. Itens fantásticos de toda sorte eram mostrados, com ilustrações feitas a mão e descrições simples dos seus efeitos. Muito em breve, entraram numa discussão animada sobre quais itens poderiam adquirir se juntassem o ouro proveniente da venda das lâminas com suas próprias reservas pessoais. Tom observou, calado enquanto o mercador parecia tranquilamente feliz com o resultado. "Diabo esperto, esse aí." pensou, rindo por dentro. "Deve ter comprado e vendido de mil companhias de aventureiros e mercenários, e sabe exatamente como fazê-los esvaziar os bolsos. Me pergunto de onde ele vem ou mesmo a que povo pertence."
Depois de quase uma hora, o grupo decidiu trocar ambas as lâminas por uma lente similar à usada por Boobeedabeetz, utilizada para identificar os efeitos de itens encantados desconhecidos. "Andando por onde andamos, vivemos topando com toda sorte de coisas estranhas. Conhecimento nunca é demais" disse Darsh. "E além disso," completou Drake, "Amakiir era o único capaz de identificar encantamentos, e, agora que ele foi lutar com as outras fadinhas, precisamos nos virar sem ele." Drake gastou boa soma de seu ouro (e uma adaga ritual que tinha obtido em ruínas antigas nas ilhas kortlani) para comprar uma bolsa fantástica que não alterava seu volume ou peso mesmo quando se colocava algo em seu interior ("Aposto que isso não vai dar em nada de bom" cochichou Darsh).
Sven pegou a lente com o dono da loja. Antes de guardá-la, entretanto, tocou em seu amuleto e murmurou uma prece discreta a Moradin, enquanto tocava a mercadoria com um dos dedos.
- O que está fazendo? - murmurou Aleena, desconfiada.
- Me certificando que isso é realmente encantado, e não uma cópia falsa - disse ele. Acabou o encanto mas, antes que conseguisse qualquer resposta, um zunido agudo cortou o ar da loja, seguido de um estalo e um flash de luz emitido pela lâmpada ametista atrás do balcão do vendedor, fazendo com que todos pulassem de susto (e Drake levasse a mão para o cabo da adaga, oculta em sua manga). Sven percebeu que a energia mística invocada por ele se dissipara no ar.
- Por favor, mestre anão, - disse Boobeedabeetz, sério - não conjure qualquer tipo de magia dentro deste estabelecimento. Garanto a integridade de minhas mercadorias, e trocarei-a com prazer caso haja qualquer tipo de problema. Tome aqui esta nota que comprova a nossa transação, assinada por mim.
Sven, envergonhado, pegou o papel das mãos do mercador e dobrou-o, guardando no bolso junto com a lente e pedindo desculpas de forma tímida. Aleena, Darsh e o anão foram saindo do estabelecimento após agradecer ao mercador. Thomas e Drake, entretanto, permaneceram no interior da loja e disseram aos amigos que alcançariam-nos depois.
Boobeedabeetz sorriu para os dois e perguntou:
- Posso ajudar os senhores em mais alguma coisa?
Drake acenou para que Tom se adiantasse e virou-se para investigar um conjunto de cálices de prata que emitiam uma leve fumaça azulada de seu interior.
- Bom... senhor mercador, eu gostaria de fazer algumas perguntas, se não se importa.
O ser alto acenou com a cabeça, encorajando-o a ir em frente.
- Ah... eu não pude deixar de notar que, bom, o senhor não tem um aspecto... como eu diria... comum, para quem anda pelas cidades dos homens todo dia. Sem querer ofendê-lo, claro.
- De forma alguma. - sorriu o mercador - Sim, meu povo não possui muitos representantes entre as cidades dos homens, é verdade. Além disso, não costumamos visitar este mundo com frequência, e raramente ficamos aqui por muito tempo quando o fazemos. Eu, é claro, sou uma exceção.
O coração de Thomas bateu mais rápido. Estavam chegando mais perto de onde queria.
- Eu entendo... senhor mercador, quando diz "esse mundo"... eu tenho ciência da existência do Plano Etéreo, onde circulam os espíritos. - Tom mexia as mãos enquanto falava - Por outro lado, os espíritos sempre comentam... dão a entender que existem outros mundos, outros planos além deste que vivemos e o Etéreo. Você veio de outro mundo não é? Pois isso é de enorme interesse para mim, se me perdoa a indiscrição. Gostaria muito de aprender sobre esses outros planos e como se relacionam com o nosso. Você é um mercador experiente, sem dúvida, e eu ficaria muito contente se o senhor pudesse me explicar um pouco sobre o lugar em que nasceu e os demais que visitou... se não for um incômodo, é claro...
Boobeedabeetz ficou quieto por um tempo. Enfim, respondeu.
- Eu sou um mercador, senhor Thomas. Infelizmente, tiro meu sustento de trocas, e não de favores. Provido uma soma de ouro, eu poderia compartilhar de algumas de minhas experiências fora deste Plano Material. Entretanto, não posso contar-lhe tudo, pois isso tomaria muito tempo, e eu tenho negócios a administrar.
Tom murchou um pouco.
- Porém, - completou o extra-planar - eu tenho uma ideia que pode nos satisfazer mutuamente. Eu tenho recebido uma boa carga de novas mercadorias de um de meus parceiros, e boa parte de meu estoque anda atrasado na catalogação e armazenagem próprias. Se você se dispor a trabalhar em minha loja como meu assistente, enquanto o fizer, posso ensiná-lo algo sobre os planos de nosso universo, à guisa de um salário em moedas. O que acha?
- Explêndido! - disse Thomas, recuperando a animação - Eu não sei quanto tempo eu e meus amigos permaneceremos aqui em Morhstarr, mas seria um prazer gastar esse tempo aqui.
- Fico feliz que a proposta o satisfaz. - disse Boobeedabeetz, sorrindo - Espero-o aqui, então, todos os dias que puder com o nascer do Sol. Amanhã o instruirei acerca do processo de catalogação.
- Agradeço, chefe! Estarei aqui sem demora!
Tom fez várias mesuras e foi saindo da loja, satisfeito consigo mesmo. Drake fez sinal para que não aguardasse por ele, e o velho xamã deixou o estabelecimento.
- Então... o que posso fazer por você?
Drake deu um passo a frente.
- Quando cheguei à porta de sua loja, consegui ler uma das placas de boas-vindas, muito embora não conhecesse as runas que a compunham. Gostaria de saber se você poderia me informar que língua era aquela.
- Pois não. De qual das placas estamos falando?
- Hmmm... é a... - Drake fez as contas, mentalmente - ...terceira acima da placa com runas élficas. Bem alta.
Boobeedabeetz olhou para ele com curiosidade.
- Ah, sim... é uma linguagem antiga, aquela. Falada em poucos lugares, e raramente pronunciada aqui nesse mundo. É a linguagem utilizada nos planos inferiores, lugares escuros e distantes - Baator, o Abismo...
Drake engoliu em seco. Tomou coragem e decidiu continuar a perguntar:
- Eu... sofro de uma condição especial, mercador. Não fui capaz de compreendê-la ainda, e gostaria de saber se o senhor pode me ajudar. Se puder, pagarei a quantia que achar justo, pois eu preciso urgentemente de informações a respeito dessa... condição.
- Claro, claro. Mas... de que tipo de condição estamos falando?
Drake respirou fundo, e levou as mãos à nuca. Desamarrou o pingente que levava preso ao pescoço. O cristal ametista na lanterna encantada de Boobeedabeetz brilhou levemente, e o ar ao redor de Drake tremulou, revelando sua verdadeira e vil forma verdadeira.
- Ora, ora - disse Boobeedabeetz - Tem muitos séculos que eu não vejo um tiefling aqui, no Plano Material. Sente-se, vamos conversar.
As ruas estreitas de Morhstarr criavam um vento gelado e cortante que pegou a Companhia desprevenida. Tremendo e se escondendo atrás das roupas, o grupo andou pela cidade seguindo as direções dadas por Thudar: subiram as ruas do Distrito Baixo até chegarem ao Mercado Grande, no coração do Distrito da Prata, e então subiram uma viela que dava diretamente na íngreme e apertada Rua Thall.
- Aposto meu cajado que é aquela loja ali - disse Darsh, apontando para uma construção estreita de quase quatro andares de altura, com uma gigantesca porta dupla de madeira na fachada.
Se aproximaram da construção e pararam para admirar a porta. Esta tinha a altura de dois homens, um nos ombros do outro, e era recoberta em intervalos regulares por pequenas placas de bronze recobertas com dizeres em diversas línguas - Ocidental, Kortlani, Garmuni, Fannardien, Nahrosi, Pellarion, Anão, Élfico e muitas, muitas outras. Darsh se surpreendeu de ver uma placa mais baixa, perto ao chão, escrita nas runas garranchosas e afiadas usadas pelos orcs. Todas as placas continham os exatos mesmos dizeres, traduzidos para todos os idiomas: "Antiguidades e Ferramentas Arcanas de Boobeedabeetz. Entre sem bater."
- "Entre sem bater." - leu Sven, em voz alta - Vamos lá, então.
Girou uma das grandes maçanetas de bronze, revelando o interior da loja. Um a um, eles foram entrando, com exceção de Drake, que ficou pra fora. Ele estivera encarando uma das placas mais altas da porta, recoberta por uma série de símbolos intrincados e complexos - mais pareciam desenhos. Ele nunca os vira na vida, e, entretanto, conseguia lê-los perfeitamente. De certa forma, ele simplesmente sabia o que significavam.
Aleena colocou a cabeça pra fora, e chamou-o:
- Ei, garmuni. Não vai entrar?
Como que despertando de um transe, Drake sacudiu os ombros e seguiu a guerreira pra dentro da loja. A porta bateu às suas costas, e um pequeno sino tocou em algum lugar. Quando olhou para o ambiente, não conseguiu impedir de soltar uma interjeição de assombro.
Nuvens de poeira eram preguiçosamente iluminadas pelos feixes de luz matinal que entravam, tímidos, pelas vidraças das janelas. O interior da loja era tão alto quanto a porta de entrada, e suas paredes de madeira escura eram completamente recobertas por itens de toda sorte. Num mostruário perto do balcão, dezenas de pequenas varas de madeira, cada qual muito diferente da outra, estavam cuidadosamente organizadas; as prateleiras altas do fundo da loja mostravam armaduras ornamentadas montadas em manequins, ao lado de uma espécie de lâmpada com um grande cristal ametista em seu interior.. Um raque à esquerda comportava várias espadas, lanças, maças e machados, alguns cravejados de joias e outros parecendo gastos e enferrujados. Uma grande redoma de vidro comportava um grande barril, de aparência absolutamente mundana. Por todo lado, as paredes eram recobertas de gavetas de tamanho variável. Mais assombroso que tudo, entretanto, era a noção que a loja era muito mais ampla por dentro do que sua arquitetura estreita sugerira por fora.
Fonte: harrypotter.wikia.com
Em um instante, o grupo foi acordado de sua contemplação quando uma figura surgiu de trás do balcão e anunciou, com uma voz grave e sedosa:
- Bem-vindos à Antiguidades e Ferramentas Arcanas. Eu sou Boobeedabeetz.
Boobeedabeetz era humanoide em sua forma, mas certamente não era humano. A pele tinha um tom azulado claro que permitia ver as veias escuras por baixo. Seu rosto era anormalmente comprido, com um queixo de tijolo; seu sorriso gentil mostrava uma gengiva saliente e dentinhos pontudos. Os olhos eram vermelhos como o fogo, e uma rede prendia o cabelo numa forma que lembrava dois grandes chifres. Usava um longo e pesado manto negro decorado com padrões discretos, desenhados também em linha negra. As mãos eram compridas e seus dedos possuíam uma articulação a mais; ele parecia estar sempre gesticulando com elas. Para coroar sua figura, Boobeedabeetz tinha pouco mais de três metros de altura.
Embasbacado, o grupo o cumprimentou com alguns murmúrios. O mercador manteve seu sorriso gentil e perguntou, num tom educado:
- Vocês buscam a venda ou compra de itens? Ou talvez querem alugar um serviço?
Aleena se adiantou:
- Venda, senhor Boobee... senhor mercador - disse ela, depositando o embrulho que continha duas lâminas em cima do balcão.
- Embora - disse Drake, olhando para os arredores com os olhos negros brilhando de ganância - não devemos descartar a compra, é claro.
Com movimentos sutis e calculados, o grande mercador abriu o embrulho entregue por Aleena e pousou seu conteúdo em cima do balcão: duas lâminas de qualidade excepcional, adquiridas pelo grupo em suas aventuras prévias. Uma delas era uma lâmina curta, forjada pelo povo élfico, encantada para causar ferimentos mortais quando atingisse o inimigo ancestral daquele povo, a raça dos orcs; a outra era uma longa cimitarra recoberta por runas arcanas, forjada com um feitiço simples que lhe garantia velocidade, durabilidade e fio superiores a uma lâmina comum.
Boobeedabeetz mexeu em um bolso no interior de seu manto e de lá retirou um grande monóculo de cristal e ouro, que encaixou em seu olho esquerdo. Automaticamente, as lentes do monóculo giraram sobre si mesmas, ajustando o foco para analisarem as lâminas. Boobeedabeetz segurou as espadas delicadamente nas pontas dos dedos longos, enquanto as estudava atentamente. Depois de um longo silêncio, sorriu para a Companhia e anunciou:
- Trabalho de boa qualidade, ambas. Encantos simples, mas eficazes. Ficarei feliz em comprá-las por dez centenas de Coroas de Ouro cada. Antes de descontar a taxa correspondente à décima primeira parte, aplicada à qualquer transação envolvendo materiais encantados, claro.
- Onze por cento? - protestou Darsh - Que absurdo é esse?
- E mil peças é pouco, senhor, muito pouco. - disse Drake - Julgo que elas valem pelo menos quinze centenas cada, e nada menos.
O mercador não desmanchou o sorriso.
- A taxa de onze por cento é aplicada sobre ordem do Duque Daven, administrador desta cidade, e nada posso fazer quanto a ela. Agora, quanto aos preços... se vamos negociar, sugiro que façamo-lo da maneira mais civilizada, concordam? Vou trazer um bule de chá e alguma coisa para beliscarmos. Venham, tenho uma mesa e algumas cadeiras aqui, creio que todos ficaremos melhor acomodados.
O grupo se entreolhou e deram de ombros. Seguiram por uma passagem perpendicular ao balcão e se acomodaram numa mesa alta. Boobeedabeetz se retirou para os fundos da loja, e retornou depois de uns instantes com um bule fumegante, um jogo de xícaras e uma travessa de madeira com uma seleção de frutos vistosos, mas desconhecidos.
- Figos - sorriu ele, antes que perguntassem. Sentou-se na ponta da mesa, numa grande almofada que o deixava quase no mesmo nível que os demais. Remexeu novamente nos bolsos e retirou um pequeno livro de couro negro, que colocou na mesa, na frente dos companheiros - Este é um catálogo dos itens e serviços por mim comercializados. Pensei que vocês poderiam se interessar em adquirir alguma mercadoria como parte do pagamento.
O grupo bebeu o chá e provou os figos enquanto se espremiam juntos para ler o catálogo. Itens fantásticos de toda sorte eram mostrados, com ilustrações feitas a mão e descrições simples dos seus efeitos. Muito em breve, entraram numa discussão animada sobre quais itens poderiam adquirir se juntassem o ouro proveniente da venda das lâminas com suas próprias reservas pessoais. Tom observou, calado enquanto o mercador parecia tranquilamente feliz com o resultado. "Diabo esperto, esse aí." pensou, rindo por dentro. "Deve ter comprado e vendido de mil companhias de aventureiros e mercenários, e sabe exatamente como fazê-los esvaziar os bolsos. Me pergunto de onde ele vem ou mesmo a que povo pertence."
Depois de quase uma hora, o grupo decidiu trocar ambas as lâminas por uma lente similar à usada por Boobeedabeetz, utilizada para identificar os efeitos de itens encantados desconhecidos. "Andando por onde andamos, vivemos topando com toda sorte de coisas estranhas. Conhecimento nunca é demais" disse Darsh. "E além disso," completou Drake, "Amakiir era o único capaz de identificar encantamentos, e, agora que ele foi lutar com as outras fadinhas, precisamos nos virar sem ele." Drake gastou boa soma de seu ouro (e uma adaga ritual que tinha obtido em ruínas antigas nas ilhas kortlani) para comprar uma bolsa fantástica que não alterava seu volume ou peso mesmo quando se colocava algo em seu interior ("Aposto que isso não vai dar em nada de bom" cochichou Darsh).
Sven pegou a lente com o dono da loja. Antes de guardá-la, entretanto, tocou em seu amuleto e murmurou uma prece discreta a Moradin, enquanto tocava a mercadoria com um dos dedos.
- O que está fazendo? - murmurou Aleena, desconfiada.
- Me certificando que isso é realmente encantado, e não uma cópia falsa - disse ele. Acabou o encanto mas, antes que conseguisse qualquer resposta, um zunido agudo cortou o ar da loja, seguido de um estalo e um flash de luz emitido pela lâmpada ametista atrás do balcão do vendedor, fazendo com que todos pulassem de susto (e Drake levasse a mão para o cabo da adaga, oculta em sua manga). Sven percebeu que a energia mística invocada por ele se dissipara no ar.
- Por favor, mestre anão, - disse Boobeedabeetz, sério - não conjure qualquer tipo de magia dentro deste estabelecimento. Garanto a integridade de minhas mercadorias, e trocarei-a com prazer caso haja qualquer tipo de problema. Tome aqui esta nota que comprova a nossa transação, assinada por mim.
Sven, envergonhado, pegou o papel das mãos do mercador e dobrou-o, guardando no bolso junto com a lente e pedindo desculpas de forma tímida. Aleena, Darsh e o anão foram saindo do estabelecimento após agradecer ao mercador. Thomas e Drake, entretanto, permaneceram no interior da loja e disseram aos amigos que alcançariam-nos depois.
Fonte: dungeonsdragons.wikia.com
Boobeedabeetz sorriu para os dois e perguntou:
- Posso ajudar os senhores em mais alguma coisa?
Drake acenou para que Tom se adiantasse e virou-se para investigar um conjunto de cálices de prata que emitiam uma leve fumaça azulada de seu interior.
- Bom... senhor mercador, eu gostaria de fazer algumas perguntas, se não se importa.
O ser alto acenou com a cabeça, encorajando-o a ir em frente.
- Ah... eu não pude deixar de notar que, bom, o senhor não tem um aspecto... como eu diria... comum, para quem anda pelas cidades dos homens todo dia. Sem querer ofendê-lo, claro.
- De forma alguma. - sorriu o mercador - Sim, meu povo não possui muitos representantes entre as cidades dos homens, é verdade. Além disso, não costumamos visitar este mundo com frequência, e raramente ficamos aqui por muito tempo quando o fazemos. Eu, é claro, sou uma exceção.
O coração de Thomas bateu mais rápido. Estavam chegando mais perto de onde queria.
- Eu entendo... senhor mercador, quando diz "esse mundo"... eu tenho ciência da existência do Plano Etéreo, onde circulam os espíritos. - Tom mexia as mãos enquanto falava - Por outro lado, os espíritos sempre comentam... dão a entender que existem outros mundos, outros planos além deste que vivemos e o Etéreo. Você veio de outro mundo não é? Pois isso é de enorme interesse para mim, se me perdoa a indiscrição. Gostaria muito de aprender sobre esses outros planos e como se relacionam com o nosso. Você é um mercador experiente, sem dúvida, e eu ficaria muito contente se o senhor pudesse me explicar um pouco sobre o lugar em que nasceu e os demais que visitou... se não for um incômodo, é claro...
Boobeedabeetz ficou quieto por um tempo. Enfim, respondeu.
- Eu sou um mercador, senhor Thomas. Infelizmente, tiro meu sustento de trocas, e não de favores. Provido uma soma de ouro, eu poderia compartilhar de algumas de minhas experiências fora deste Plano Material. Entretanto, não posso contar-lhe tudo, pois isso tomaria muito tempo, e eu tenho negócios a administrar.
Tom murchou um pouco.
- Porém, - completou o extra-planar - eu tenho uma ideia que pode nos satisfazer mutuamente. Eu tenho recebido uma boa carga de novas mercadorias de um de meus parceiros, e boa parte de meu estoque anda atrasado na catalogação e armazenagem próprias. Se você se dispor a trabalhar em minha loja como meu assistente, enquanto o fizer, posso ensiná-lo algo sobre os planos de nosso universo, à guisa de um salário em moedas. O que acha?
- Explêndido! - disse Thomas, recuperando a animação - Eu não sei quanto tempo eu e meus amigos permaneceremos aqui em Morhstarr, mas seria um prazer gastar esse tempo aqui.
- Fico feliz que a proposta o satisfaz. - disse Boobeedabeetz, sorrindo - Espero-o aqui, então, todos os dias que puder com o nascer do Sol. Amanhã o instruirei acerca do processo de catalogação.
- Agradeço, chefe! Estarei aqui sem demora!
Tom fez várias mesuras e foi saindo da loja, satisfeito consigo mesmo. Drake fez sinal para que não aguardasse por ele, e o velho xamã deixou o estabelecimento.
- Então... o que posso fazer por você?
Drake deu um passo a frente.
- Quando cheguei à porta de sua loja, consegui ler uma das placas de boas-vindas, muito embora não conhecesse as runas que a compunham. Gostaria de saber se você poderia me informar que língua era aquela.
- Pois não. De qual das placas estamos falando?
- Hmmm... é a... - Drake fez as contas, mentalmente - ...terceira acima da placa com runas élficas. Bem alta.
Boobeedabeetz olhou para ele com curiosidade.
- Ah, sim... é uma linguagem antiga, aquela. Falada em poucos lugares, e raramente pronunciada aqui nesse mundo. É a linguagem utilizada nos planos inferiores, lugares escuros e distantes - Baator, o Abismo...
Drake engoliu em seco. Tomou coragem e decidiu continuar a perguntar:
- Eu... sofro de uma condição especial, mercador. Não fui capaz de compreendê-la ainda, e gostaria de saber se o senhor pode me ajudar. Se puder, pagarei a quantia que achar justo, pois eu preciso urgentemente de informações a respeito dessa... condição.
- Claro, claro. Mas... de que tipo de condição estamos falando?
Drake respirou fundo, e levou as mãos à nuca. Desamarrou o pingente que levava preso ao pescoço. O cristal ametista na lanterna encantada de Boobeedabeetz brilhou levemente, e o ar ao redor de Drake tremulou, revelando sua verdadeira e vil forma verdadeira.
- Ora, ora - disse Boobeedabeetz - Tem muitos séculos que eu não vejo um tiefling aqui, no Plano Material. Sente-se, vamos conversar.
Fique ligado para descobrir mais sobre a natureza e o passado sombrio de Drake Krowsey!
O Mestre
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