sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Interlúdio - O Fim de Aryana


   O vento frio que entrava pelas portas dos fundo da casa fazia com que as chamas bruxuleassem na lareira e nas velas, deixando o rosto marcado de Xhu Sie ainda mais tenebroso, uma verdadeira máscara de sombras e cicatrizes.

   A senhora pigarreou um pouco e começou a falar. Apesar das palavras firmes, sua voz era arranhada e rouca, como se ela não falasse há muito tempo.




Fonte: www.my-favorite-camping-store.com





   "Como você pode notar por meu nome e meu sotaque, eu não nasci aqui neste lugar. Nasci longe, muito longe, a Leste, há vários anos, num lugar que em minha língua chamamos de Ilha dos Muitos Templos. Eu nasci parte de um clã orgulhoso de... espadachins, habilidosos e corteses, inigualáveis em luta e com coração de ouro."

   "Como se dizem ser os cavaleiros de Garmun." disse Aleena. Xhu Sie concordou com a cabeça.

   "De certa forma, sim. Mas diferente, muito diferente. Nosso estandarte era o  do Leão, e nós éramos a justiça, o braço forte do... imperador. Nenhum clã era mais importante do que o nosso, nenhum mais orgulhoso."

   "Não obstante, a ilha em que nasci era um reduto aos deuses e espíritos ancestrais de meu povo, e os guerreiros do Leão lá eram... guardiões, acho que a palavra é essa. Treinávamos e lutávamos como todos os Leões, mas raramente tínhamos um inimigo verdadeiro, pois apenas guardávamos o templo e a ilha. Eu era tola naquela época, guerreira. Era tola e impaciente, e daí vieram todos os meus erros."
    Ela parou por um instante, engolindo. Olhou para o nada por algum tempo e então retomou:
   "Eu sempre fui apta ao caminho da espada. Com quatorze anos, quase nenhum espadachim da ilha era capaz de me derrotar, salvo os mais antigos e experientes, e esses - com a sabedoria que a idade traz - nunca lutariam em desafio a uma criança. Portanto, eu era invicta, e assim, fiquei orgulhosa. E tola."

   "Um dia, em minha juventude, decidi que meu lugar não era ali. Era forte demais para ser dispensada como um cão que guarda um jardim, pensava. Assim, tomei um barco e fui à cidade, conversar com o líder dos Leões, mostrar minha força e solicitar que me fosse dada uma tarefa mais desafiadora. Minha família sentiu vergonha de mim e me advertiu contra minha soberba, mas não dei ouvidos. Novamente, fui tola."

   "Ao chegar ao senhor de nossas terras e líder de nosso clã, me apresentei. Ele me tratou com respeito, pois, embora eu fosse de um ramo menor do clã, ele era um homem que reverenciava os deuses antigos. No entanto, quando disse minhas palavras, seu rosto se tornou sombrio. Disse que eu havia nascido na Ilha com um propósito, e esse propósito era servir aos deuses. Eu disse que os deuses me fizeram mais forte que todos na ilha, e por isso merecia estar lutando nas guerras feudais e não sentada em frente a um templo. Ele disse que eu era do Leão, e deveria honrar a minha posição e a hierarquia do clã. Eu disse que era do Leão, e que era esperado de mim que fosse brava e forte. Ele se calou e olhou pra mim por muito tempo, e então disse: 'Pois bem, ó espadachim mais forte da Ilha dos Muitos Templos. Veremos sua força inigualável, pois você é do Leão; e se fores tão forte quanto dizes, darei-te uma grande armadura e um corcel de guerra, e farei-te capitã sobre meu comando. Se não fores...' mas eu o cortei, tola como era. Disse: 'Serei forte como digo. Se não for, faça de mim o que quiser, pois minha vida nada mais valerá.'"

   Aleena deu um sorriso contido. Os kortlani sempre valorizavam a força e contavam várias histórias em que heróis valorosos, de origens humildes, suplantavam nobres de títulos poderosos mas pouca bravura.

   "Eu vesti meus trajes de batalha e afiei minha lâmina. Naquela noite, sonhei com grandeza e glória. Acordei com um salto de meu leito, e fui ao grande Pátio dos Leões, enfrentar meu destino. Mas o que encontrei lá não era o que eu esperava. Todos os capitães e nobres do Leão estavam lá, e, no meio da praça, vestido para guerra, estava o líder dos Leões, altivo e poderoso como só ele era. Eu engoli em seco: confiava em meu poder, mas sabia que o líder era imensamente poderoso. Ele disse: 'Xhu Sie do Leão, espero que o sono tenha dado-te sabedoria. Recues agora e desistas, e voltarás para sua ilha e cumprirás teu dever; caso contrário, teu destino será terrível.'. Mas eu era orgulhosa demais, tola demais, e não recuei. Saquei minha espada e o enfrentei. Não é necessário dizer que fui facilmente dominada por ele, um guerreiro em muitos níveis superior a mim..."

   "Espere aí!" disse Aleena, confusa. "Você disse que era uma espadachim excelente. Como o combate foi assim tão fácil para ele?"

   A senhora sorriu, triste. "Eu era a melhor de minha ilha, guerreira do Norte, e apenas isso. Minha ilha tinha sido meu mundo, e eu me considerava a melhor do mundo. Mas não era grande coisa, comparada a um capitão médio dos Leões, quanto mais em relação ao líder do clã. Você se esquece que eu era jovem e..."

   "Tola." completou Aleena. "Continue."

   "Continuarei, e acalme-se, pois em breve chegaremos à parte que você quer que eu chegue; porém, deveria prestar mais atenção no início da história, pois pode aprender muito com isso."





Fonte: l5r.wikia.com



    "Derrotada e humilhada, me ajoelhei perante o líder. Ele me olhou, impiedoso, e falou para que todo o clã ouvisse: 'Xhu Sie. Foste orgulhosa e tola, e achavas que estavas acima do meu juízo, e acima dos desígnios dos deuses. Agora, escutes meu julgamento.'. Eu tremia, pois achava que o líder clamaria por minha vida. Entretanto, o castigo foi pior, pois assim ele disse: 'Envergonhastes a si mesma, a sua família, o seu clã e a mim. Comportaste-te como uma bárbara, e não como uma cidadã de império; portanto, determino que não mais te chamarás Xhu Sie do Leão, e apenas Xhu Sie. Amanhã deixarás as terras do clã e deixará o Império, e irás para Oeste, viver com os bárbaros que são como ti. Assim decreto eu, líder do clã do Leão'."

   "Eu não achara que havia punição pior. Permitiram-me trazer as roupas de meu corpo e uma espada, e me colocaram num barco mercante que vinha para Nahros no dia seguinte. Foram dias sombrios da minha vida, os que se seguiram do início de meu exílio. Eu não era mais eu mesma: era a sombra de meu passado, um corpo sem alma e sem vida. Eu andei por Nahros por muito tempo, e depois encontrei a sombria fronteira de Ruhsma; andei ainda mais, sempre a Oeste, e cheguei em Garmun. Nesses dias eu passava fome e dormia nas estradas, vivendo de restos. Fui molestada e abusada mais vezes do que posso me lembrar. Nunca resisti. Não havia por que lutar. Um espadachim Leão, sem um senhor e um ideal por quem lutar, é o ser mais infeliz e miserável deste mundo, guerreira."

   Aleena não pode deixar de sentir uma pontada profunda de compaixão. Não pela fome, nem pela solidão, mas por também conhecer a dor de ser uma mulher guerreira num mundo dominado por homens. Sabia bem demais o que era aquilo.

   "Eu tinha três décadas de vida quando conheci Artim Daven II, pai do Duque desta cidade. Ele acabara uma campanha em uma das intermináveis guerras dos bárbaros, e topou com o que restara de mim na beira da estrada. Era o fundo de meu poço: estava magra, suja, com retalhos de roupas, e dormia debaixo de uma sebe. Contra a minha vontade, ele mandou me limparem, me alimentarem e me vestirem com roupas novas. Eu protestei, mas não resisti. Não resistia a mais nada, naquela época."

   "Quando acordei, em uma de suas carroças, ele veio ter comigo. Eu lhe disse que era inválida, inútil, e pedi que me deixasse em paz. Ele me perguntou se eu sabia lutar, pois carregava ainda minha espada - que, pelo maior capricho do destino, permanecia comigo ainda. Os homens do Oeste não gostam das espadas do Leste: gostam de seus pedaços de ferro retos e pesados, que pedem mais músculo do que habilidade para serem manejadas. Talvez por isso mantive minha espada, ou talvez... talvez esse tenha sido meu destino."

   "Eu lhe respondi que tinha lutado, mas que aquele tempo ficara para trás. Ele olhou em meus olhos e disse algo que nunca me esqueci, guerreira. Ele disse o seguinte: 'Quando um guerreiro cai, ele tem duas opções. Ou se levanta e honra sua posição, ou morre na lama como um covarde. Se há qualquer honra em você, oriental, levante-se. Em minha fortaleza há espaço para uma guerreira, mas os covardes pertencem à beira da estrada.'"

   "Até hoje não sei de onde saíram as forças para me levantar. Os Daven têm isso neles, é engraçado. Falam o que você precisa ouvir. Eu sei que ganhei um quarto na fortaleza, e, mais importante, ganhei alguém por quem lutar. Alguém a quem servir. Meu corpo estava parado fazia anos, e minha mente e alma estavam em estado ainda mais deplorável. Mas dei tempo ao tempo, e me tornei forte e altiva de novo."

   "Por vários anos servi o velho Daven da maneira que, quando garota, sempre sonhara: de guerra em guerra, de batalha em batalha. Quando não haviam conflitos, eu era encaminhada para resolver problemas de aldeões aqui e ali: derrotar alguma fera perigosa, dar conta de algum grupo de bandidos. Tudo isso eu fiz com perfeição. Mas, muito embora eu estava em paz comigo mesma, não posso afirmar que fosse feliz. Me faltava algo, guerreira. Me faltava uma motivação verdadeira."

   "Daven não permitiu que eu participasse da sua jornada à mina amaldiçoada onde seu pai perecera. Eu estava, naquele tempo, resolvendo uma contenda com os von Bohr, a serviço do próprio Duque. Foi uma pena: ele morreu na mina, como vocês bem sabem. Eu ofereci meus serviços ao jovem Artim Daven, que tinha apenas dez anos na época, mas seus conselheiros estavam arredios e me dispensaram. Me compraram essa casa e me deixaram um bom dinheiro para viver, em descanso."

   "Por alguns anos, isso me bastou. Vivia em paz e contemplação, mas ainda com o sentimento de que algo me faltava. Eu me tornara muito diferente da jovem impetuosa que fora na infância, e também diferente da alma perdida que fora na juventude. Aprendera os costumes bárbaros, sua língua, e conhecera suas terras. Não os considerava mais seres inferiores ou fracos: vi que, em sua próprio maneira, podiam ser tão honrados ou civilizados do que nós, nascidos no Grande Império do Leste. Dessa forma, não pude negar o pedido de ajuda que me foi feito pelo jovem Artim Daven III, quando ele solicitou que eu liderasse um grupo de mercenários contratados para defender Davensport (nessa época, uma pequena vila pesqueira) de um possível ataque kortlani. Eu fui."




 Fonte: www.historyfiles.co.uk



    "Vou lhe poupar os detalhes da batalha, afinal, sei que você já esteve presente em um saque. Levamos a melhor, por muito pouco. Os saqueadores foram derrotados a custo de cada um de nossos homens. No fim do dia, só sobrara eu... e uma jovem donzela escudeira, de longas tranças louras. Era sua mãe, Aryana, embora eu não soubesse na época. Nos enfrentamos sobre a chuva de outono. Ela era capaz, mas poucos no ocidente são capazes de enfrentar um espadachim do Leão de igual pra igual... e, portanto, eu venci. No entanto, quando sua mãe caíra por terra, eu não consegui dar o golpe final. Seus olhos estavam vermelhos e marejados, e ela disse apenas uma palavra no idioma do oeste. Ela disse: "Não". Então eu..."

   "CHEGA!" Aleena se levantou da mesa, gritando. "Eu me recuso! Não ouvirei você profanar a memória de minha mãe assim. Ela era uma saqueadora! Era kortlani! Nenhum guerreiro de meu povo se acovarda perante a morte. Você mente, velha. Ou então conheceu uma outra Aryana. Talvez uma garmuni de mesmo nome. Uma impostora, quem sabe."

   A velha deu um sorriso triste e ligeiro. "Era Aryana de Serpeheim. Aryana Lança-Longa."

   "Pare! Eu a proíbo de insultar meu sangue assim! Se esta não fosse a sua casa, eu já teria sacado minha espada e dado conta de você! Agradeça aos seus deuses que o povo que você ofende tem sagrado respeito pela hospitalidade, oriental!"

   "Eu entendo sua raiva. Posso parar minha história aqui, guerreira, e você pode seguir sua vida sonhando sobre um fim heroico para sua mãe. Entendo também o costume de seu povo em nunca recuar perante o inimigo. Acredite, isso é um aspecto que nós, do Grande Império, também compartilhamos. Entretanto, existe um motivo para sua mãe ter temido a morte - o maior motivo de todos. Não era para preservar a própria vida, mas para salvar as vidas que carregava."

   Aleena congelou. Sentiu um pouco de vergonha, e o rosto ardeu. Sentou-se de novo, bufando. Olhou a mulher nos olhos e disse:

   "Continue, por favor."

   "Como quiser..." Xhu Sie ocupou-se por alguns instantes, num acesso repentino de tosse. Por fim, continuou: 

   "Eu tive pena daquela inimiga. Não a matei. Vi nela o que eu mesmo fora: uma mulher, guerreira, lutando pelo seu caminho num mundo dominado por homens. Estendi a mão para levantá-la, mas ela perdeu a consciência devido aos seus ferimentos. Segurei-a então, e a levei comigo. Davensport estava consumida pelo fogo, e então eu avancei pela mata, em direção a Morhstarr. Nenhum de meus subordinados tinha sobrevivido. Eu me culpava, é claro, mas sabia que o Duque não se importaria. Os saqueadores tinham sido derrotados, e, se isso custasse a vida de mercenários, pouco importava."

   "Achei uma casa de lenhador abandonada na floresta. Lá, tratei Aryana, e ela me contou que estava grávida. Sem querer, nós, inimigas no campo de batalha, agora aliadas. Eu cuidava de seus ferimentos; ela me contava histórias sobre seu povo. Nos tornamos amigas. O destino é uma coisa curiosa."

   "Passamos meio ano na casa. Quando o momento veio, eu fiz o parto de sua mãe (de forma precária, sim, mas era o que podíamos fazer). O fruto de seu ventre veio forte e belo. Eu nunca tinha presenciado aquilo antes: o surgimento de uma vida. Novamente, guerreira, eu mudava. Tinha experimentado a amizade de uma inimiga, o amor dos bárbaros, e testemunhado o maior milagre do qual os homens são capazes. Naqueles dias, pensei que finalmente meu propósito se revelara pra mim."

   "Mas nosso mundo é cheio de dor, guerreira. E, um dia, recebemos uma visita em nosso abrigo. Eram guerreiros de seu povo. Eles vinham procurando Aryana, e não estavam felizes quando a encontraram. Pois eram chefiados por um guerreiro poderoso e terrível, de longos cabelos da cor do fogo e uma fúria que só se vê nos kortlani. Seu nome era Krugar.",

   "Meu pai" disse Aleena.

   "Sim. Ele chegou até nós com seus homens. Estava fora de si: tomado pelo ódio e pelo álcool. Ele não quis ouvir a mim ou à Aryana. Se queria uma coisa: a vingança contra aqueles que tomaram sua esposa. Em sua cabeça, eu era a culpada."

   "Seus homens atearam fogo à casa, enquanto Krugar avançou contra mim. Em qualquer condição, eu o derrotaria sem dificuldade... mas tinha que proteger Aryana, ainda fraca, e seu fruto. Sinto dizer que falhei. Krugar avançou contra mim, lançando Aryana e o que ela carregava ao chão, perto das chamas que tomavam conta da casa. Não se importava nem mesmo com sua esposa e sua descendência, apenas com a vingança. Eu mesma fui nocauteada e lançada às labaredas. Fui tida como morta, e isso salvou minha vida."

   "Quando dei por mim, estava ferida e quase morta" tocou as cicatrizes no rosto. "Mas as dores de meu corpo nada se comparavam àquelas de meu coração. Seu pai me  tomou quase tudo, Aleena, quase tudo que eu realmente me importava nesse mundo. Minha amiga jazia morta. Nossa casa, queimada. Uma criança fora levada; mas eu duvidava que estivesse viva, pois vira ela cair ao chão."

   Aleena engoliu em seco. As lágrimas inundaram seus olhos. Lembranças inundaram sua mente: a ausência dos pais na infância, sua mudança para Dartistaed, o encontro com seu irmão Krug, tão diferente... e aquela mulher, que protegera sua mãe mesmo quando inimigas, responsável pela perpetuação de seu sangue. Aleena viu a verdade: ela devia muito, muito mesmo, àquela estranha oriental. Levantou-se da cadeira e ajoelhou-se, solenemente, ao lado da senhora.

   "Minha família lhe deve tudo. Você nos ajudou sem motivo e sem ganho, e sua recompensa foi apenas dor. Eu me coloco a seu serviço, senhora."

   "A meu serviço? Posso usá-la, talvez. Mas só aceitarei o serviço de uma aluna, pois esse é costume de meu povo." disse Xhu Sie, com um ar melancólico. "Afinal de contas, já ensinei um kortlani antes. Mas a devoção deverá ser completa, Aleena. Não poderá me questionar ou desobedecer, nunca. Acha que é capaz?"

   "Sim."

   "Pois bem. Amanhã começará a me servir, então. Sua dívida será paga, e, quem sabe, você pode até se tornar uma espadachim competente."

   "Sim."

   "Então, por seu senso de justiça, faço-lhe uma promessa: sirva-me, e um dia lhe revelarei quem é o Homem Marcado Pelo Fogo."

   Pela última vez naquela noite, Aleena olhou, surpresa, para a velha senhora. Sua expressão era uma máscara indecifrável, similar à que usava para encobrir as feições.



A companhia está prestes a enfrentar tempos de mudança... e o fardo de Aleena é o mais pesado de todos. Continue acompanhando para descobrir o futuro da donzela guerreira!



O Mestre

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