Este capítulo faz parte do Abraço das Sombras, blog-irmão do Companhia Inconsequente. Para mais informações, ver este post.
Capítulo 1: Prólogo
O sol já ia se pondo às costas da figura esguia.
Sentada na borda da parede de pedra que se estendia acima da
estrada, esperava pacientemente por algum movimento abaixo de seus pés que
o fosse garantir o dinheiro do jantar.
O garoto já havia sentado e
esperado por viajantes desavisados ali inúmeras vezes antes. Conhecia todos os
pontos de apoio daquela rocha que permitiam que ele descesse rápido e
sorrateiramente, encurralando suas vítimas antes que tivessem tempo de reagir. Acima
das paredes os últimos raios de sol iam se despedindo, dando aos céus
uma coloração rósea, mas entre elas uma tênue névoa se misturava às
sombras.
"Tanto melhor."
Quando ele se levantou para
pegar seus poucos e mal-cuidados pertences e voltar para a
cidade, planejando deixar sua decepção por um dia infrutífero de
trabalho no fundo de uma caneca, viu que figuras entravam no desfiladeiro, com
tochas acesas em mãos.
Apertou os olhos, soltou sua
sacola puída e esperou. Contou três lanternas. A fraca luz que emitiam permitiu
que visse a composição do grupo: dois cavalos à frente e uma carroça coberta de
madeira que parecia ser puxada por quatro cavalos. Alegrou-se; uma carroça
coberta puxada por quatro cavalos e dois guarda-costas à frente? Era provável
que fosse alguém com posses de valor.
Pegou seu arco, ajustou sua
aljava na cintura e desceu a parede até a metade de sua altura. Cair
dali significaria nunca mais andar, na melhor e mais otimista das
hipóteses, mas uma reentrância na pedra permitia que ficasse agachado e
atirasse. Seria arriscado demais tentar parar um grupo tão grande,
- suicídio, talvez - então ele tinha decidido por uma abordagem
mais direta e conservadora.
O grupo se aproximava lentamente.
A névoa e a luz das lanternas provavelmente dificultavam ao grupo ver a
emboscada que os aguardava. O emboscador, no entanto, conseguia vê-los
perfeitamente. Segurou três flechas em sua mão, silenciosamente puxou o arco e
mirou. A primeira flecha voou em direção ao condutor da carroça; a segunda
seguiu, zunindo, para o primeiro guarda montado; a terceira já voava
antes que a primeira atingisse seu alvo. Todos os três estavam mortos
antes que pudessem reagir.
O rapaz desceu a parede até o chão
com agilidade e puxou as rédeas da carroça até que os cavalos, que não
pareciam ter percebido o que havia acontecido, parassem. Com adaga em mãos, o
garoto abriu a pequena porta de madeira na lateral do veículo e o adentrou -
adaga primeiro. O interior coberto de tecido aveludado em vermelho e
branco sugeria o mesmo ar de riqueza e qualidade do exterior, e
contava com apenas dois passageiros: uma pequena arca, repousando no
assento, e um homem enrolado em peles, que dormia profundamente.
O homem, bem-cuidado e saudável,
parecia estar no final de seus vinte anos, e caracóis louros descansavam
em sua fronte, contrastando com suas sobrancelhas e bigode
escuros. Curioso, o garoto abriu a pequena arca devagar, e o alívio
tomou conta de si quando atestou que havia uma quantidade obscena de ouro em seu
interior, provavelmente suficiente para seis quinzenas de ostentação
irresponsável ou dois invernos de conforto razoável.
Sem antecipar o surpreendente
peso do pequeno baú, deixou que ele caísse no chão, e o barulho de moedas
acordou o homem, que despertou já levando a mão à cintura e sacando sua adaga.
O rapaz levou sua adaga de encontro à garganta do homem, que se rendeu e jogou
sua arma na poltrona. Isso permitiu um olhar mais atento à face do homem
que estava à sua frente. Lágrimas se formavam no canto de seus olhos e um
rubor de medo e vergonha tomava conta de sua pele alva. O garoto teve a
impressão de que conhecia esse homem, embora soubesse que não conhecia nenhum
nobre ou comerciante rico. O branco-e-vermelho de sua roupa combinava com
as cores do interior, e sua adaga...
O garoto olhou para a adaga que
repousava sob o tecido rubro da poltrona. Sentiu que fraquejava. Aquela
adaga... Olhou para o homem que implorava misericórdia em meio a prantos. Suas
lágrimas pareciam mover-se devagar, como mel escorrendo, e ficavam cada
vez mais lentas. Olhou mais uma vez para a adaga na poltrona cor de sangue. Uma
lâmina recurvada, com desenhos de curvas belas e finas. O cabo era dourado, e
um dragão com olhos de safira decorava sua base. Sua visão ia se
cerrando enquanto sua mão alcançava a arma, lentamente, como se o
tempo fosse mil vezes mais lento.
Sentiu o toque do metal dourado na
ponta de seus dedos, gélido como o mais frio dos invernos. Cerrou o punho
ao redor do cabo e tudo foi tomado pela escuridão.
Viu uma sala ricamente decorada,
com estantes de livros fechando duas paredes e, de frente à terceira, uma mesa
de madeira brilhante cheia de pergaminhos e livros. Sentado atrás da mesa, de
costas para a janela, estava um homem alto, largo e forte. Tinha cabelos e
barba louros, e olhos preocupados. Repousava a cabeça sob os punhos cerrados. A
porta do escritório abriu-se e por ela entraram vários homens e alguns
rapazes.
Sem falar, um deles sacou uma
espada e dirigiu-se à mesa. Antes que o grande homem atrás dela pudesse reagir
já havia uma espada cravada em seu peito. Ele caiu com um baque surdo e nunca
mais se levantou.
O homem da espada limpou a lâmina
com desdém e chamou um dos rapazes. Aproximaram-se do corpo e dele tiraram uma
pequena adaga recurvada com uma cabeça de dragão.
A cena desapareceu na escuridão
que se seguiu. Uma voz perguntou: "Você agora sabe quem está na sua
frente?"
O garoto respondeu:
"O filho do assassino de meu pai."
"Seu arco pela primeira
vez falhou em tirar uma vida. Às suas costas está um dos guardas, com
espada em mãos, prestes a rasgar seu corpo frágil em dois. Você quer que
isso aconteça antes que você se vingue?"
"Não."
"Você quer o poder para se
vingar?"
"Sim."
A escuridão se desfez dos olhos do
garoto, e ele via o rosto congelado do homem. Percebeu que ele olhava para
algo que não podia ver: o guarda, prestes a atacá-lo. Virou-se com
facilidade, e olhou para o guarda. Sua espada já parecia estar em movimento,
mas movia-se tão devagar que parecia um sonho. Viu que a adaga de seu pai
estava firme em sua mão, e encheu-se de raiva. A raiva tomou conta de seu
corpo, e o rapaz sentiu que já não estava mais no controle. Era só o ódio.
Cortou o braço do guarda como uma fruta madura, cravou a lâmina entre seus
olhos e a puxou para baixo, deixando um rastro de carne e sangue flutuando no
ar.
Olhou para o homem amedrontado e
fechou a porta. O tempo voltara a sua velocidade normal, mas ele não
falava. Sua expressão estava congelada, seus olhos arregalados e a boca aberta,
tremendo. O garoto não veria o que o homem viu antes de morrer. Não mais estava
ali o garoto, mas um ser com chifres retorcidos sob a cabeça, descendo até a
altura dos olhos completamente negros, orelhas pontudas e dentes
pontiagudos cravejados em uma mandíbula da qual saíam pequenos chifres. Sua
pele havia ficado completamente branca, com algumas marcas e símbolos
negros que pareciam se mover. Sob esta, era possível ver veias com sangue
negro. Parecia haver sombras que se mexiam mesmo no interior escuro da carroça,
com tentáculos se espalhando pelas paredes e teto, indo em sua direção.
A última coisa que viu foi aquela
criatura rindo, extaticamente, com seus dentes monstruosos à mostra. Quando
localizaram seus restos mortais, irreconhecíveis e emanando uma aura
maligna, acharam todo o ouro que transportava, mas jamais
encontrariam sua adaga.
O Ladino
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