sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O Abraço das Sombras: Capítulo 1 - Prólogo

Este capítulo faz parte do Abraço das Sombras, blog-irmão do Companhia Inconsequente. Para mais informações, ver este post.

Capítulo 1: Prólogo

O sol já ia se pondo às costas da figura esguia. Sentada na borda da parede de pedra que se estendia acima da estrada, esperava pacientemente por algum movimento abaixo de seus pés que o fosse garantir o dinheiro do jantar.

O garoto já havia sentado e esperado por viajantes desavisados ali inúmeras vezes antes. Conhecia todos os pontos de apoio daquela rocha que permitiam que ele descesse rápido e sorrateiramente, encurralando suas vítimas antes que tivessem tempo de reagir. Acima das paredes os últimos raios de sol iam se despedindo, dando aos céus uma coloração rósea, mas entre elas uma tênue névoa se misturava às sombras.
"Tanto melhor."
Quando ele se levantou para pegar seus poucos e mal-cuidados pertences e voltar para a cidade, planejando deixar sua decepção por um dia infrutífero de trabalho no fundo de uma caneca, viu que figuras entravam no desfiladeiro, com tochas acesas em mãos.
Apertou os olhos, soltou sua sacola puída e esperou. Contou três lanternas. A fraca luz que emitiam permitiu que visse a composição do grupo: dois cavalos à frente e uma carroça coberta de madeira que parecia ser puxada por quatro cavalos. Alegrou-se; uma carroça coberta puxada por quatro cavalos e dois guarda-costas à frente? Era provável que fosse alguém com posses de valor.
Pegou seu arco, ajustou sua aljava na cintura e desceu a parede até a metade de sua altura. Cair dali significaria nunca mais andar, na melhor e mais otimista das hipóteses, mas uma reentrância na pedra permitia que ficasse agachado e atirasse. Seria arriscado demais tentar parar um grupo tão grande, - suicídio, talvez - então ele tinha decidido por uma abordagem mais direta e conservadora.
O grupo se aproximava lentamente. A névoa e a luz das lanternas provavelmente dificultavam ao grupo ver a emboscada que os aguardava. O emboscador, no entanto, conseguia vê-los perfeitamente. Segurou três flechas em sua mão, silenciosamente puxou o arco e mirou. A primeira flecha voou em direção ao condutor da carroça; a segunda seguiu, zunindo, para o primeiro guarda montado; a terceira já voava antes que a primeira atingisse seu alvo. Todos os três estavam mortos antes que pudessem reagir.
O rapaz desceu a parede até o chão com agilidade e puxou as rédeas da carroça até que os cavalos, que não pareciam ter percebido o que havia acontecido, parassem. Com adaga em mãos, o garoto abriu a pequena porta de madeira na lateral do veículo e o adentrou - adaga primeiro. O interior coberto de tecido aveludado em vermelho e branco sugeria o mesmo ar de riqueza e qualidade do exterior, e contava com apenas dois passageiros: uma pequena arca, repousando no assento, e um homem enrolado em peles, que dormia profundamente.
O homem, bem-cuidado e saudável, parecia estar no final de seus vinte anos, e caracóis louros descansavam em sua fronte, contrastando com suas sobrancelhas e bigode escuros. Curioso, o garoto abriu a pequena arca devagar, e o alívio tomou conta de si quando atestou que havia uma quantidade obscena de ouro em seu interior, provavelmente suficiente para seis quinzenas de ostentação irresponsável ou dois invernos de conforto razoável.
Sem antecipar o surpreendente peso do pequeno baú, deixou que ele caísse no chão, e o barulho de moedas acordou o homem, que despertou já levando a mão à cintura e sacando sua adaga. O rapaz levou sua adaga de encontro à garganta do homem, que se rendeu e jogou sua arma na poltrona. Isso permitiu um olhar mais atento à face do homem que estava à sua frente. Lágrimas se formavam no canto de seus olhos e um rubor de medo e vergonha tomava conta de sua pele alva. O garoto teve a impressão de que conhecia esse homem, embora soubesse que não conhecia nenhum nobre ou comerciante rico. O branco-e-vermelho de sua roupa combinava com as cores do interior, e sua adaga...
O garoto olhou para a adaga que repousava sob o tecido rubro da poltrona. Sentiu que fraquejava. Aquela adaga... Olhou para o homem que implorava misericórdia em meio a prantos. Suas lágrimas pareciam mover-se devagar, como mel escorrendo, e ficavam cada vez mais lentas. Olhou mais uma vez para a adaga na poltrona cor de sangue. Uma lâmina recurvada, com desenhos de curvas belas e finas. O cabo era dourado, e um dragão com olhos de safira decorava sua base. Sua visão ia se cerrando enquanto sua mão alcançava a arma, lentamente, como se o tempo fosse mil vezes mais lento.
Sentiu o toque do metal dourado na ponta de seus dedos, gélido como o mais frio dos invernos. Cerrou o punho ao redor do cabo e tudo foi tomado pela escuridão.
Viu uma sala ricamente decorada, com estantes de livros fechando duas paredes e, de frente à terceira, uma mesa de madeira brilhante cheia de pergaminhos e livros. Sentado atrás da mesa, de costas para a janela, estava um homem alto, largo e forte. Tinha cabelos e barba louros, e olhos preocupados. Repousava a cabeça sob os punhos cerrados. A porta do escritório abriu-se e por ela entraram vários homens e alguns rapazes.
Sem falar, um deles sacou uma espada e dirigiu-se à mesa. Antes que o grande homem atrás dela pudesse reagir já havia uma espada cravada em seu peito. Ele caiu com um baque surdo e nunca mais se levantou.
O homem da espada limpou a lâmina com desdém e chamou um dos rapazes. Aproximaram-se do corpo e dele tiraram uma pequena adaga recurvada com uma cabeça de dragão.
A cena desapareceu na escuridão que se seguiu. Uma voz perguntou: "Você agora sabe quem está na sua frente?"
O garoto respondeu: "O filho do assassino de meu pai."
"Seu arco pela primeira vez falhou em tirar uma vida. Às suas costas está um dos guardas, com espada em mãos, prestes a rasgar seu corpo frágil em dois. Você quer que isso aconteça antes que você se vingue?"
"Não."
"Você quer o poder para se vingar?"
"Sim."
A escuridão se desfez dos olhos do garoto, e ele via o rosto congelado do homem. Percebeu que ele olhava para algo que não podia ver: o guarda, prestes a atacá-lo. Virou-se com facilidade, e olhou para o guarda. Sua espada já parecia estar em movimento, mas movia-se tão devagar que parecia um sonho. Viu que a adaga de seu pai estava firme em sua mão, e encheu-se de raiva. A raiva tomou conta de seu corpo, e o rapaz sentiu que já não estava mais no controle. Era só o ódio. Cortou o braço do guarda como uma fruta madura, cravou a lâmina entre seus olhos e a puxou para baixo, deixando um rastro de carne e sangue flutuando no ar.
Olhou para o homem amedrontado e fechou a porta. O tempo voltara a sua velocidade normal, mas ele não falava. Sua expressão estava congelada, seus olhos arregalados e a boca aberta, tremendo. O garoto não veria o que o homem viu antes de morrer. Não mais estava ali o garoto, mas um ser com chifres retorcidos sob a cabeça, descendo até a altura dos olhos completamente negros, orelhas pontudas e dentes pontiagudos cravejados em uma mandíbula da qual saíam pequenos chifres. Sua pele havia ficado completamente branca, com algumas marcas e símbolos negros que pareciam se mover. Sob esta, era possível ver veias com sangue negro. Parecia haver sombras que se mexiam mesmo no interior escuro da carroça, com tentáculos se espalhando pelas paredes e teto, indo em sua direção.
A última coisa que viu foi aquela criatura rindo, extaticamente, com seus dentes monstruosos à mostra. Quando localizaram seus restos mortais, irreconhecíveis e emanando uma aura maligna, acharam todo o ouro que transportava, mas jamais encontrariam sua adaga.
O Ladino

Nenhum comentário:

Postar um comentário