Capítulo 2: Reminiscência
Karl nasceu na segunda noite de um chuvoso
verão garmuni. Sua mãe, Leistung Starkeroamer, vinha sentindo-se fraca por
semanas e não sobreviveu ao trabalho de parto. Coube a Hart Hvitstein, seu pai,
criá-lo, como dita a tradição garmuni, pois jamais voltou a se casar.
Hart era o Arquiduque de Garmun. Como o país não possuía reis ou príncipes, exercia efetivamente estes cargos. Coletava impostos sobre todos os territórios, podia reunir forças de todos os ducados e tinha poder absoluto de veto sob qualquer decisão tomada em suas terras. Apesar de suas posses e status, tinha um castelo relativamente modesto (embora certamente digno de menção): tinha menos de dez acres, mas era circundado por um lago artificial e uma floresta com a vegetação mais variada, oriunda de todos os lugares que se pode imaginar. A única qualidade verdadeiramente extravagante do castelo era uma torre de mármore branco separada da construção principal, de formato circular, que se estendia acima do chão até quinze andares acima dele. Nunca entrara lá, mas Karl sabia que havia sido erguido para sua mãe e selado quando faleceu.
Quando não estava sendo educado em línguas, ciências naturais, história, geografia e política por seu pai ou seu conselheiro e braço direito, Dumme Weisheit, Karl estava brincando na floresta. Era acompanhado por filhos de nobres que faziam parte da corte, e juntos colhiam frutos exóticos, nadavam no lago e cavalgavam em pôneis.
Com sete anos, Karl já estudava economia, a lei garmuni e música. Era prodigiosamente inteligente: havia aprendido a ler em seu quarto ano de vida, e já escrevia fluentemente no quinto. Seus talentos iam além dos intelectuais, também; um pequeno arco de madeira, feito especialmente para o pequeno mestre, era seu brinquedo favorito. Era uma vida confortável, e amava-a profundamente. Já havia visto crianças magricelas e famintas na capital quando seu pai o levara para uma distribuição anual de roupas e alimento aos mais pobres da cidade, o que fez crescer sua gratidão pela vida que levava e sua motivação para estudar e descobrir maneiras de melhorar a qualidade de vida dos menos favorecidos.
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"Acorde, garoto, acorde! Acorde e não fale nada!"
"Dumme? O que está acontecen-"
"Estamos sob ataque, Karl! Pare de discutir e venha comigo, garoto!"
O conselheiro do arquiduque o pegou pelo pulso e o guiou, em passos rápidos mas silenciosos, do corredor fora do quarto de Karl até o corredor de serviço, usado pelos funcionários da residência. Desceram escadas de pedra, do segundo andar, passando pelo primeiro, até a adega. Apesar da escuridão absoluta no ambiente fechado e gélido, Karl só expressou o medo em seus olhos, que estavam completamente arregalados, como se tentasse, em vão, enxergar nas trevas. Weisheit manteve o passo ritmado e cauteloso, atravessando a adega com a confiança de quem já tinha o trajeto gravado na mente.
Subiram outra escada, passaram por corredores , abriram portas e finalmente estavam do lado de fora do prédio. O céu começava a sugerir que os primeiros raios de luz estavam por vir. O pulso do menino foi puxado de novo. Colados à parede da qual emergiram, seguiram até chegar em um dos cantos do prédio. Fizeram a curva e deram de frente com um cavalo de guerra da guarda do castelo, com armadura de couro batido, várias sacolas de carga cheias e um pequeno arco de madeira. Karl reconheceu-o de imediato.
Montaram e seguiram diretamente para o lago. Como estava congelado, foram capazes de atravessá-lo e adentraram a floresta. Viajaram por um dia inteiro, e Dumme não respondeu uma pergunta sequer. "Espere até amanhã," disse o homem de cabelos grisalhos e olhos profundos e cansados, "amanhã estaremos longe, e responderei suas perguntas."
O amanhã chegou, sem a menor pressa. Foi um dia tão lento e tedioso quanto o anterior, com horas aparentemente infindáveis de viagem sem respostas. Finalmente pararam em uma clareira para montar acampamento. Karl juntou gravetos enquanto Dumme fazia um círculo mágico de proteção e montava a tenda. Não acenderiam fogueira naquela noite, apesar do frio castigar os ossos naquela época do ano. Comiam em silêncio quando o menino perguntou, com tremor na voz:
"Dumme... meu pai morreu, não é?"
O homem suspirou com um cansaço que não podia ser resultado exclusivo de nem mesmo dois dias inteiros de cavalgada. Olhou para Karl, e viu o rapazote. Apesar de sua inteligência prematura e seu talento com o arco, ainda era um menino de sete anos. Era fácil se esquecer disso e tratá-lo como se fosse quatro, cinco anos mais velho. Viu que lágrimas se reuniam em seus olhos, e considerou mentir. Lembrou da honra garmuni e de seu soberano.
"Sim, Karl. Seu pai foi traído por aqueles que juraram-no lealdade. Ele não está mais neste mundo."
As lágrimas escorriam dos olhos do garoto em silêncio. O conselheiro colocou as mãos em seu ombro e disse:
"Você ainda é jovem, pequeno mestre, mas já tem inimigos poderosos. O sangue de seus pais corre em suas veias. Seja forte."
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